Por Paulo Brabo em Bacia das Almas
Tal como a nuvem se desfaz e some,
aquele que desce à sepultura nunca tornará a subir.
Jó 7:9
Talvez aproximar-se da Bíblia sem grandes prejulgamentos baste para se entender que é com muita hesitação que o próprio texto bíblico se aproxima da ideia de imortalidade. Em termos narrativos, históricos e literários, é só a terceira terça parte da Bíblia que tem algo a dizer sobre vida eterna – e mesmo assim não fala, muito provavelmente, da vida eterna como a estamos acostumados a imaginar.
Porém, o que quer que se conclua sobre a vida eterna em Daniel e no Novo Testamento, permanece o fato de que os dois primeiros terços da Bíblia tendem a sugerir, com impressionante consistência, que o que existe é esta vida – que deve ser bem vivida, com gratidão, com integridade e com gosto, porque é somente esta.
Esse silêncio em relação à vida depois da morte é no mínimo curioso, tendo em vista que a ideia de imortalidade pessoal é mais antiga do que os mais antigos textos bíblicos. A antiquíssima cultura egípcia, em particular, desenvolveu muito cedo as noções de [1] uma sobrevivência do eu depois da morte, de [2] um tribunal no além em que os atos desta vida eram pesados contra uma medida eterna de integridade, e de [3] uma eternidade de glória no céu (literalmente no céu, entre o sol e as estrelas) para os que se mostrassem dignos depois de passar por uma série de provas. Inicialmente esse destino eterno estava reservado exclusivamente ao faraó, mas pouco a pouco foi se estendendo ao restante da aristocracia egípcia (essencialmente, todos que tinham recursos suficientes para cobrir os custos dos rituais necessários, inclusive a mumificação).
O Egito foi um dos dois berços de Israel, mas o Antigo Testamento testemunha que o sonho egípcio de uma vida depois da morte no céu não deixou qualquer marca na religião judaica. Alguns trechos do Pentateuco parecem ter sido escritos de modo a polemizar e desacreditar a religião egípcia, deixando clara a superioridade do Deus e da fé dos hebreus, mas alguma forma vida depois da morte não parece ter sido considerada necessária para comprovar essa supremacia.
O pacto de Deus com a descendência de Abraão prometia, essencialmente, realização e fertilidade e prosperidade nesta vida para os que cumprissem a lei e os mandamentos. A eternidade que a Israel seria dada experimentar residia no fato de serem um povo, uma genealogia, uma semente: uma eternidade fundamentada na hereditariedade e na perpetuação do sangue, não na imortalidade pessoal.
E não é só que a Bíblia hebraica tem pouco a dizer sobre a questão da imortalidade; o espantoso é o quanto ela tem a dizer sobre a mortalidade.
A mortalidade é, na verdade, tema essencial do fio da narrativa bíblica e do modo bíblico de explicar o mundo. E sua tese central é esta: para seres humanos como nós, mortalidade e sabedoria devem andar sempre juntas. Não há um modo aceitável de separá-las.
Se refletimos sobre assunto, parecerá haver algo de terrível e trágico, algo de fundamentalmente injusto, no fato de sermos sábios e de sermos simultaneamente mortais. Para a Bíblia hebraica, que não pensa como nós, é apenas inevitável que gente sábia seja mortal e que gente mortal seja sábia. Uma coisa não deve existir sem a outra.
Um dos argumentos mais recorrentes dos livros de sabedoria – Salmos, Provérbios, Eclesiastes – é precisamente este: não é apesar de sermos mortais, é porque somos mortais que devemos aprender a viver com sabedoria. Quem tem visto temporário nesta terra não se pode dar ao luxo de viver sem prudência, sem integridade e sem inteligência. É precisamente isso o que dizem e querem dizer declarações como “ensina-nos a contar os nossos dias, de modo a que alcancemos corações sábios” (Salmo 90:12). O motor para se viver bem deve ser a consciência de que ninguém vive para sempre.
O fundamento dessa tradição bíblica é a ideia de que a sabedoria deve ser abraçada com gosto e com paixão porque ela é um dom divino. A sabedoria é um atributo de Deus do qual – pelo tempo limitado da sua vida na terra – é dado ao homem a possibilidade de desfrutar. Por isso, “tudo quanto te vier à mão para fazer, faze-o conforme as tuas forças; porque na sepultura, para onde tu vais, não há obra, nem projeto, nem conhecimento, nem sabedoria alguma” (Eclesiastes 9:10). Viva com sabedoria hoje, porque “[quando alguém morre] sai-lhe o espírito, e ele volta para a terra; naquele mesmo dia perecem os seus pensamentos” (Salmo 146:4).
Segundo essa visão, a vida humana é duplamente preciosa porque é curta e porque, em sua brevidade, permanece ainda estendida ao homem a oportunidade de viver (de modo temporário e honorário) como Deus – em sua sabedoria. Nesse modo de ver as coisas, os animais têm vida mas não têm sabedoria, o homem tem sabedoria mas não é eterno: Deus é único a pisar simultaneamente os domínios da vida, da sabedoria e da eternidade.
É por isso que a única forma nobre de se viver esta vida mortal é vivê-la com aquilo que ganhamos em comum com Deus: o conhecimento da maneira certa de se portar e de se viver.
É precisamente isso o que ensina – é isso o que explica – a história da árvore do conhecimento do bem e do mal no livro de Gênesis: sabedoria e mortalidade são coisas inseparáveis nesta condição humana. O mesmo fruto que nos deu o dom da sabedoria (porque, na história, o conhecimento do bem e do mal é uma coisa boa, um verdadeiro dom e atributo de Deus) nos vedou o acesso à imortalidade. O preço de ser sábio é ser mortal, e a compensação de ser mortal é ser sábio. É menos a história da queda do que a história das contradições da condição humana.
De certo modo, essa história fundacional de Gênesis antecipa o que acabaram concluindo antropólogos, psicólogos e pensadores existencialistas muito tempo depois: a angústia da condiçãohumana e sua simultânea glória reside no fato de sabermos que nossos dias estão contados. Os animais não chegarão a ser sábios porque não sabem que vão morrer.
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