Texto de Cristiane Segatto publicado originalmente na Época
Em setembro de 1921, uma menina inteligente chamada Patricia e seu colega John foram retirados da sala de aula em São Francisco pelo psicólogo Lewis Terman, da Universidade Stanford. Ele estava interessado em entender quais fatores contribuem para o sucesso intelectual e pediu que o professor selecionasse os melhores alunos. Recrutou 1.500 crianças. Nas décadas seguintes, Terman e seus seguidores coletaram detalhes preciosos sobre o grupo: quantidade de atividade física, amamentação, hábitos alimentares, satisfação no emprego, no casamento e na vida sexual etc. Oitenta anos depois do primeiro encontro com o psicólogo, Patricia e John viviam com saúde. Qual era o segredo deles?
Essa pergunta motivou a pesquisa dos psicólogos Howard S. Friedman e Leslie Martin, da Universidade da Califórnia. Desde os anos 90 eles investigam o destino de cada um daqueles 1.500 garotos espertos. O objetivo é entender como e por que alguns morreram precocemente enquanto outros se tornaram tataravôs. A história da pesquisa incomum que durou 80 anos e as mais recentes conclusões estão no livro The longevity project (Editora Penguin), publicado neste mês nos Estados Unidos e sem previsão de lançamento no Brasil.
Qualquer coisa que se publique sobre longevidade tem grandes chances de fazer sucesso. Uma busca rápida com essa palavra na livraria eletrônica Amazon revela que estão disponíveis 2.991 títulos. Há o manual que ensina centenas de maneiras de viver até os 100; outro que promete um ganho de 20 anos de vida; um terceiro que revela os 50 segredos das pessoas mais velhas do mundo; e mais um que promete levar o leitor à fronteira da imortalidade. Todos são baseados em conselhos genéricos e conhecidos: evitar o estresse, comer brócolis, fazer atividade física, cultivar relações sociais, ter um bom casamento.
Friedman e Leslie não recomendam nada disso. Eles desafiam o senso comum. Para viver mais é preciso evitar o estresse e as preocupações? Segundo a dupla, crianças preocupadas e menos otimistas chegaram aos 90 anos justamente porque cuidaram mais da saúde ao longo dos anos e buscaram relacionamentos mais satisfatórios. Trabalhar demais faz mal? De acordo com o livro, os sujeitos mais produtivos e comprometidos com o trabalho foram os que viveram mais. Casar prolonga a vida? Isso foi verdade apenas para os homens que eram felizes no casamento. Eles viveram mais que os separados. Para o sexo feminino, o casamento feliz não teve impacto sobre a longevidade. Mulheres satisfeitas com o marido viveram tanto quanto as divorciadas ou as viúvas (leia outras conclusões no quadro abaixo).
“Nossa sociedade gasta uma fortuna com dietas da moda, remédios e outras soluções passageiras que podem ajudar, mas trazem pouco ou nenhum benefício quando o objetivo é prolongar a vida”, diz Friedman. Segundo ele, uma conjunção de fatores explica a longevidade de alguns dos participantes. “A personalidade, a trajetória profissional e a vida social provaram-se altamente relevantes para a saúde a longo prazo”, afirma. Em outras palavras: para viver mais é preciso ser preocupado sem ser neurótico, ter um trabalho instigante e desafiador, manter um bom casamento e ter amigos. Poucos e bons amigos são suficientes. Ser popular não fez ninguém ganhar anos de vida.
A pesquisa é curiosa, mas está longe de abalar o conhecimento atual sobre os fatores que contribuem para a longevidade. O livro não traz estatísticas e dados objetivos para embasar as afirmações dos autores. Notas de rodapé indicam referências de análises feitas com grupos menores (cerca de 700 alunos) e publicadas em revistas científicas de pouca expressão.
O estudo vem recebendo críticas também por outras razões. A amostra total (1.500 crianças) relativamente pequena compromete a confiabilidade das análises. Ele não atinge o nível dos estudos científicos baseados em grandes populações. É o caso do Framinghan Heart Study, um dos mais respeitados estudos de saúde já realizados. Há cinco décadas, três gerações de moradores da cidade localizada no Estado de Massachusetts, no total de 14 mil pessoas, estão sendo acompanhadas para descobrir os fatores que contribuem para o surgimento de doenças cardiovasculares.
Há outro problema no Longevity Project: as informações são todas baseadas em testes de personalidade e relatos de estilo de vida feitos pelos próprios participantes. Isso reflete a especialidade dos pesquisadores como psicólogos. A única fonte incontestável de informação são as certidões de óbito que a equipe usou para comprovar a idade e a causa da morte dos voluntários. A partir desse material, as relações de causa e efeito estabelecidas por Friedman e Leslie são ousadas. Como é possível afirmar que o divórcio dos pais faz o filho viver apenas até os 60 anos – e não até os 80 anos – como eles sustentam? Ou que crianças que entraram na escola antes dos 6 anos tiveram a vida encurtada porque brincaram pouco na infância? É preciso lembrar que os sujeitos da pesquisa viveram num tempo completamente diferente dos dias de hoje. Divórcio era um evento dramático que muitas vezes significava perder o pai ou a mãe para sempre. Escola era um lugar rígido que funcionava à base da disciplina e dos castigos físicos – e não uma extensão da casa onde as crianças podiam brincar e viver o melhor da infância. As crianças entrevistadas eram todas brancas e de classe média. A pesquisa não revela nada sobre longevidade em outros grupos. Muitas das garotas viraram donas de casa. Quando discute o papel do trabalho sobre a saúde, o Longevity Project mede como os homens se relacionam com seus empregos.
Os autores do estudo dizem que usaram métodos científicos capazes de assegurar s a confiabilidade das conclusões. “Nenhum estudo é capaz de analisar todas as variáveis individuais que podem contribuir para a vida mais longa ou mais curta”, disse Leslie a ÉPOCA. “Mas usamos controles estatísticos capazes de analisar o peso de fatores reconhecidamente relevantes para a saúde.” A importância do divórcio dos pais sobre a saúde dos filhos é um exemplo. Depois de suspeitar que aquela separação parecia ter roubado alguns anos de vida dos adultos, a equipe foi verificar o consumo de álcool desses voluntários na maturidade ou na velhice. Concluiu que eram pessoas que consumiam mais álcool. O excesso de bebidas alcoólicas despontou como uma causa evidente de mortalidade precoce. O que a medicina considera excesso é mais de cinco doses de álcool por dia. Cinco latas de cerveja, por exemplo. “Sabemos que essa não é a única explicação”, diz Leslie. “Continuamos pesquisando para tentar identificar a maior quantidade possível de fatores relevantes envolvidos nisso.”
O que talvez seja a maior fragilidade científica do trabalho de Leslie e Friedman é que ele se apoia quase exclusivamente em informações sobre comportamento – e desconsidera as predisposições genéticas, que aumentam o risco de doenças que encurtam a vida. Não empolga, portanto, os cientistas interessados nos aspectos biológicos da longevidade. “Nunca tinha ouvido falar nessa pesquisa”, diz o italiano Valter Longo, professor de gerontologia e ciências biológicas da Universidade do Sudeste da Califórnia. “Considerando que trabalho num dos principais centros americanos de estudos sobre a longevidade, esse não é um bom sinal.” E completa: “O estudo é interessante, mas não prova nada. Eles têm de fazer o trabalho difícil de comprovar essas hipóteses”. O geriatra João Toniolo Neto, da Escola Paulista de Medicina, também manifesta reservas. “Esse é um estudo observacional. Ele mostra tendências, mas não é capaz de oferecer dados objetivos”, diz ele. “Serve como curiosidade, mas não traz dados científicos capazes de mudar nossas recomendações sobre como viver mais e melhor.” As regras básicas da vida saudável continuam as mesmas: boa alimentação, atividade física, cultivar relações sociais, ter satisfação sexual etc. Tudo isso ajuda, mas não garante a expansão da vida. Quem não conhece um centenário que infringe várias dessas regras, mas tem uma genética que o torna duro na queda? Chegar lá não é para quem quer. É para quem pode.
Vi no Pavablog
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