Publicado por Paulo Brabo [via Pavablog]
Acordei sobressaltado esta madrugada e me me dei conta: em abril de 2014 completo dez anos sem aparelho de tv em casa. Para que a transparência seja completa, devo explicar que moro sozinho e, claro, tenho acesso à internet (trabalho pela internet) – mas o fato não muda: fora um seriado ou outro assistidos no computador (Lost! Community! The Walking Dead!), são dez anos morando no Brasil sem assistir televisão, aberta ou fechada. Nenhuma novela, nenhum programa de entrevistas, nenhum noticiário, nenhuma propaganda.
Essa abstinência, embora fácil, me forneceu uma perspectiva do país que a sua dose diária de televisão pode ter roubado de você. O que aprendi em dez anos sem televisão?
1
A televisão ocupa os últimos espaços sociais da vida
É hoje lugar comum maldizer tablets e smartfones, porque efetuam a proeza de separar em mundos estanques tanto familiares dentro de uma casa quanto amigos ao redor de uma mesa do bar. Sou o primeiro a concordar com essa avaliação e com outras mais pessimistas, mas o problema só é acentuado pela sobrevivência da televisão.
O televisor (alguém ainda usa essa palavra? Tele-visor) nunca foi conhecido por unir famílias e incitar a conversação, mas durante muito tempo era um só e podia ser desligado – “vão brincar lá fora, que o smartfone ainda não foi inventado e tenho de conversar com o seu pai”,
Pela minha avaliação, hoje cada aposento da casa tem o seu aparelho de tv, até mesmo espaços sagrados como o quarto de dormir e a cozinha – meu Deus, a cozinha. E o costume é deixá-las ligadas sempre, algumas vezes todas ao mesmo tempo; algumas vezes com o volume baixo, como se adiantasse alguma coisa. E estão ligadas também em muitos bares e restaurantes, emudecendo amigos e até casais.
Vamos combinar que os smartfones são coisa de Satanás, mas mesmo quando estão todos desligados o espaço social permanece inocupável pela onipresença da tela azul. Pelo menos um par de olhos, normalmente todos, permanecem distraídos pela sereiazinha. Acredite, eu conheço a tentação, do contrário não teria concluído que não posso viver com ela.
2
A morte do brasileiro cordial
Salvo engano, você ouviu da tese de Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil(1936), de que a contribuição brasileira para a civilização foi o homem cordial. Outros povos conhecem distância entre as esferas privada e pública, e sabem que nessa última é preciso ser impessoal e duro. Para o brasileiro todo relacionamento é pessoal, por isso a cordialidade é um modo de vida – daí o medo de ofender, a capacidade de tolerância, o desejo de intimidade, o horror a hierarquias, a hesitação em acreditar que alguém pode ser melhor do que alguém.
Por séculos o regime nacional de cordialidade favoreceu, mesmo que pelo via rasa da condescendência, as minorias e os menos privilegiados. Isso, claro, foi antes: ao longo da última década o brasileiro cordial deixou de ser o ideal nacional. Em particular, e a despeito de uma brutal desigualdade na distribuição de renda, foram os mais ricos que perderam contato com a arte da cordialidade.
A agressividade, meu amigo, agora é aberta, bem como as agressões. Tento manter-me a salvo dos noticiários, mas a evidência é tão numerosa que vaza: agora índio tem é que morrer, pobre tem é que morrer, gay tem é que morrer, preto tem é que morrer, sem-terra tem é que morrer. Para ouvir a voz neonazista da elite brasileira, basta não dizer nada.
3
Você é espetáculo maior do que a sua tv
E estou falando de você, caro e anônimo leitor. Às vezes penso que o nosso apego à televisão é mais revelador do que o apego a computadores e smartfones. Um smartfone, por maldito que seja, pode servir de ferramenta de contato com outras pessoas e com o que costumávamos chamar de realidade. A televisão é hoje basicamente ruído de fundo, e está ligada para que você não tenha de ponderar o que gostaria de fazer se ela não estivesse ali.