publicado na IstoÉ
CRISE Aos 52 anos, a religiosa que brilhava entre as estrelas evangélicas do País vê o poderio de sua igreja definhar |
A líder evangélica enfrenta a decadência de sua Renascer em Cristo, que
já fechou 70% dos templos, a doença do filho e sucessor natural, em coma
há dois anos, e os processos na Justiça por formação de quadrilha e
estelionato.
Confira vídeo da chamada para a matéria da IstoÉ Independente que
estará nas bancas da próxima semana – Reportagem de João Loes e Rodrigo
Cardoso.
“É difícil pensar em alguém menos apropriado que a bispa Sônia
para escrever um livro intitulado ‘Vivendo de Bem com a Vida’.” A frase é
de um ex-bispo que foi do alto escalão da Igreja Renascer em Cristo por
mais de uma década e sintetiza o momento da instituição neopentecostal
brasileira liderada pelo casal Sônia, 52 anos, e Estevam Hernandes, 57.
No ano em que comemora um quarto de século,
a denominação, tida como a grande promessa evangélica dos anos 1990,
dá sinais claros de que está em franca decadência. Com cisões internas,
uma complicada crise sucessória, um crescente número de lideranças
migrando para outras denominações, templos fechados por falta de
pagamento de aluguel e um sem-número de indenizações a serem pagas num
futuro próximo, as perspectivas não são nada boas. “O futuro da igreja
está nas mãos de Deus”, disse a bispa em entrevista exclusiva à ISTOÉ (leia aqui).
O livro “Vivendo de Bem com a Vida” (Ed. Thomas Nelson), que narra
parte da trajetória desta que ainda é uma das figuras femininas de maior
peso do movimento neopentecostal brasileiro, será lançado oficialmente
no sábado 10, na Bienal do Livro do Rio de Janeiro. Com tom professoral e
confessional, o título já vendeu as 17 mil cópias da primeira impressão
e está a caminho de esgotar as dez mil da segunda, uma raridade para o
mercado editorial brasileiro. Parte desse quinhão será oferecida para os
fiéis nos templos da Renascer a preços bem acima da média. “Quero cinco
pagando R$ 300 por cada um destes livros até o final do culto”,
anunciarão os bispos, como já fazem com os CDs, DVDs e livros nos
templos da instituição. Tudo para aumentar a arrecadação do grupo. “A
sede deles por dinheiro é absolutamente insaciável e está destruindo a
igreja”, afirma o ex-bispo.
DOR Juris Megnis perdeu mãe e avó no desabamento do templo da Renascer e ainda não foi indenizado |
Sede essa que não é mais condizente com a estrutura encolhida que a
igreja tem hoje. Em 2002, a Renascer em Cristo contava com 1.100 templos
espalhados pelo Brasil e o mundo. Atualmente são pouco mais de 300. O
líder que poderia imprimir agilidade à administração, o bispo Tid, primogênito de Estevam e Sônia que sempre
teve saúde frágil, está em coma profundo há quase dois anos num leito
de hospital. Da equipe de aproximadamente 100 bispos de primeiro time
que a denominação tinha espalhada pelo Brasil até 2008, metade saiu para
outras igrejas levando consigo pastores, diáconos e presbíteros. Para o
lugar deles, ascenderam profissionais com menos experiência, o que,
especula-se, pode ser um dos motivos da debandada de fiéis.
Quem acompanha a bispa hoje, porém, pode até acreditar que ela viva
de bem com a vida, como diz o título de seu livro. Com um salário que
gira em torno dos R$ 100 mil, ela continua com programas televisivos e
de rádio diários, se veste com as mais exclusivas grifes e está sempre
adornada com joias e relógios caros. Do apartamento triplex onde mora,
em um bairro nobre na zona centro-sul da capital paulistana, ela sai
pela cidade para cumprir suas obrigações de carro importado, blindado e
escoltada por dois seguranças. Isso quando não usa um helicóptero
avaliado em R$ 2,5 milhões para visitar seus sítios e haras no interior
paulista. Mas que o observador não se engane. A riqueza que ela ostenta
hoje não tem a retaguarda do começo dos anos 2000, quando a Renascer
nadava de braçada no mar do crescente movimento evangélico brasileiro.
“Hoje os Hernandes sangram a igreja para dar sobrevida ao padrão de vida
nababesco que têm”, acusa um dissidente. Se nos anos 1990 a opulência
do casal servia de chamariz para os adeptos da teologia da prosperidade,
que celebra a riqueza material como uma dádiva proporcional ao fervor
com que o devoto professa sua fé, hoje ela é uma ameaça à sobrevivência
da instituição.
Mas como uma neopentecostal de envergadura internacional, que trouxe
eventos gigantescos ao País, como a Marcha para Jesus, capaz de
arregimentar 3,5 milhões de pessoas na capital paulista num único dia, e
criou marcas de imenso sucesso como o Renascer
Praise – o maior show de música gospel do Brasil, com mais de 15
edições –, entrou numa espiral descendente e, aparentemente,
irreversível, de prestígio e credibilidade? Por que uma líder tão
carismática como Sônia Hernandes perdeu apelo tão rápido? Dois eventos,
próximos um do outro, desencadearam a derrocada da instituição. O
primeiro começou na madrugada do dia 14 de janeiro de 2007, uma
terça-feira. A caminho de Miami, nos Estados Unidos, Sônia, Estevam,
dois filhos e três netos embarcaram na primeira classe de um voo levando
US$ 56.467 em dinheiro. Ao pousar, tentaram passar pela alfândega
americana sem declarar o valor. Foram pegos, presos, admitiram a culpa e
cumpriram pena de reclusão em regime fechado e semi-aberto. Na época
veio a público a informação de que parte da quantia foi encontrada
dentro de uma “Bíblia”.
Bispa Sônia em uma Marcha para Jesus |
O impacto na igreja por aqui foi de nítido enfraquecimento. Segundo o
professor Paulo Romeiro, da pós-graduação em ciências da religião da
Universidade Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo, casos como esse
podem até reforçar os laços de quem tem vínculos exclusivamente
emocionais com a instituição. Mas para o fiel pragmático – cada vez mais
presente no rol de devotos, como bem mostra a alta no trânsito
religioso entre denominações – a força de um caso desse pode ser
devastadora. Somada às acusações de lavagem de dinheiro, falsidade
ideológica e estelionato feitas pelo Ministério Público do Estado de São
Paulo (MP-SP), que vieram a público em 2007, a prisão nos Estados
Unidos potencializou as incertezas dos fiéis. “Eles perderam a confiança
do rebanho”, garante outro dissidente. Em 2008, o reflexo da debandada
chegou aos cofres da instituição. Naquele ano, como arrecadou menos, a
dívida com aluguéis de imóveis bateu os R$ 7 milhões.
Pouco depois, enquanto o casal ainda cumpria pena nos Estados Unidos,
veio o segundo baque. Em 18 de janeiro de 2009 o telhado da sede da
Renascer, na avenida Lins de Vasconcelos, no Cambuci, área central de
São Paulo, desabou. No espaço onde boa parte dos cultos era filmada e
transmitida, nove pessoas morreram e 117 ficaram feridas. Um laudo
preliminar apontou como causa do acidente problemas de conservação e
manutenção da estrutura. Dois anos e oito meses após a tragédia, ninguém
foi formalmente indenizado. Em pelo menos dez processos, a igreja foi
condenada a pagar valores aos fiéis e parentes das vítimas fatais que
variam entre R$ 10 mil e R$ 150 mil. Mas os representantes da entidade
recorreram de todas as decisões de primeira instância. Somente o
advogado Ademar Gomes promove 37 ações de indenização. “A
responsabilidade da igreja em relação ao que aconteceu já está
comprovada pelos laudos técnicos do Instituto de Criminalística.” O
professor de inglês Juris Megnis Júnior, 43 anos, perdeu a mãe, Maria
Amélia de Almeida, 60, e a avó Acir Alves da Silva, 79. Sem chance de
escapar dos escombros, elas morreram abraçadas. “Não há um dia em que
não pense nisso. Nada vai reparar”, afirma. Dirigentes da Renascer
respondem criminalmente e na área cível pelo caso em dois processos, que
ainda não têm perspectiva de desfecho.
DESFALQUE A saída do casal Kaká e Caroline Celico, abaixo com Estevam e Sônia, da Renascer representou um baque e tanto à instituição: eram os principais dizimistas |
Em meados de 2009, foi o agravamento do estado de Tid que adiantou a volta do casal dos Estados Unidos. A Justiça americana autorizou o retorno 15 dias antes do fim da sentença, no começo de
agosto, para que os pais estivessem no Brasil, caso o estado de saúde do
filho piorasse. O retorno marcou uma piora na instituição. O saneamento
das contas foi interrompido de vez e a torneira voltou a se abrir para
bancar os gastos de Estevam e Sônia. “Não podíamos tirar da contagem nem
o dinheiro para pagar o papel higiênico, que dirá o aluguel do templo”,
diz um bispo sobre a época que sucedeu o retorno do casal. Contagem é o
nome dado pelos religiosos para o procedimento que acontece logo depois
do culto, quando as doações são somadas. “Tínhamos que remeter tudo
direto para a sede.” Com o aluguel atrasado em diversos locais, a igreja
começou a receber ordens de despejo. Em levantamento de dezembro de
2010 feito pelo site Folha Renascer, uma espécie de fórum aberto sobre
assuntos ligados à igreja dos Hernandes, 29 templos aparecem com a ordem
registrada por falta de pagamento de aluguel em nove foros paulistanos.
Hoje com fama de má pagadora, a Renascer tem dificuldade de encontrar
proprietários dispostos a tê-la como inquilina.
Foi também em 2010 que a igreja perdeu seu garoto-propaganda e
principal dizimista, o jogador de futebol Kaká. Com a mulher, Caroline
Celico, eles formavam uma dupla que fortalecia e divulgava a Renascer no
Brasil e no mundo. O casal Hernandes não comenta a saída, muito menos o
atleta do Real Madrid. Apenas Caroline arrisca alguns comentários
enviesados. “Confiei no que me falavam. Parei de buscar as respostas de
Deus para mim e comecei a andar de acordo com a interpretação dos
homens”, escreveu ela em seu
blog. O mau uso do dízimo pago pelo craque, que sabia do fechamento de
templos e da fuga de lideranças, teria motivado o rompimento com a
igreja. Foi um baque financeiro e tanto. Kaká é o sexto jogador mais bem
pago do mundo e, estima-se, depositava nas contas da Renascer 10% dos
R$ 21 milhões anuais que recebia.
No fim, quem mais sofre é o fiel. Sua religiosidade acaba envolvida,
marginal e injustamente, em questões pouco sagradas. Os evangélicos têm
todo o direito de pagar o dízimo e as igrejas de recolhê-lo. O problema é
quando o dinheiro desaparece dos templos para reaparecer em forma de
ternos, sapatos, brincos e anéis de lideranças pouco comprometidas com a
fé. “Estamos nos trâmites finais do processo, em primeira instância,
que acusa tanto Estevam quanto Sônia por dissimulação de patrimônio,
também conhecida como lavagem de dinheiro”, diz o promotor de Justiça do
Grupo de Atuação Especial Contra o Crime Organizado do Ministério
Público de São Paulo (Gaeco-SP), Arthur Lemos Júnior. O casal costuma
atribuir as acusações à perseguição ou à ação de forças malignas. Até
meados dos anos 2000 esse discurso tinha algum efeito. Hoje, porém, as
coisas mudaram. “A Renascer nunca mais será o que foi”, sentencia
Romeiro. Será difícil honrar seu nome de batismo.
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