Imagem: Suicídio, de Édouard Manet, 1877 |
Ricardo Gondim, no seu site
Ficou famosa a frase de Albert Camus sobre o suicídio: “O suicídio é a grande questão filosófica de nosso tempo, decidir se a vida merece ou não ser vivida é responder a uma pergunta fundamental da filosofia.” O existencialista francês não contemplou, com certeza, a questão pelo ângulo que vou abordar. Pego, entretanto, a afirmação dele para mostrar que a inciativa de acabar com a vida radicaliza a ideia de liberdade.
O suicida desafia as questões fundamentais do livre arbítrio. A liberdade de dizer sim ou não à própria existência contrapõe qualquer conceito de soberania divina. Até onde Deus controla o dedo que puxa o gatilho ou a mão que enlaça o pescoço? O suicida cumpre algum propósito preconcebido antes de seu nascimento? Insisto em perguntar (sem cinismo): “Quem se mata interrompe por conta própria os planos divinos ou cumpre o papel que lhe foi designado antes da fundação do universo?”.
Para melhor entender o embaraço, imaginemos um debate sobre os limites da liberdade humana. O auditório está lotado. De um lado fica o grupo que defende teses deterministas: “cultura, genética e forças econômicas se somam a infinitos fatores circunstanciais, e ninguém é livre”. À esquerda, existencialistas meneiam a cabeça. Com chavões sartreanos, repetem: “a existência precede a essência, e a existência acontece no imperativo de ser livre”. No centro, teólogos agostinianos, dedo em riste, deixam claro: “a humanidade só conhece a liberdade de pecar”. Nas últimas cadeiras, niilistas gritam: “a vida não tem sentido algum e a própria necessidade de dar sentido à existência não passa de desespero em face da morte”. De repente, no meio da algazarra, um jovem se levanta. Ele carrega um revólver. Enfia o cano na boca, e antes que alguém possa evitar, puxa o gatilho.
No exato instante em que o rapaz escolhe acabar com a própria vida, os debatedores, perplexos, se entreolham. Não há o que dizer.
O susto deixa várias perguntas sem resposta. A brutalidade do gesto estava “escrita e determinada” por quais fatores? Deus? Ele tinha o código genético de matar-se? Em vidas passadas, selou aquela hora? Ou Deus o predestinou para tal insanidade? Alguma mão cobria a que executou o gesto? Quem ajudou ou, pior, empurrou o suicida para o abismo? É possível entender as forças sociais, genéticas ou instintivas que levam um rapaz a um ato tresloucado?
Por mais de um motivo, Camus acertou. O suicídio é, sim, um nó górdio tanto da teologia como da filosofia. No suicídio reside o mais radical e completo exemplo do livre arbítrio. A não interferência divina nas escolhas individuais ficam claras quando alguém se mata. Repetindo Sartre, o findar-se com as próprias mãos mostra que a humanidade “está condenada à liberdade”.
Aristóteles afirmou que mulheres e homens se diferenciam dos animais só por serem racionais. Descartes tentou ir além: humanos são mais excelentes por terem desenvolvido sentimentos. Rousseau, entretanto, procurou demonstrar que liberdade é o fator determinante para se entender a humanidade
Para o iluminista francês, somos livres porque dispomos da capacidade de aperfeiçoar-nos – ou de destruir-nos. Só os humanos conseguem libertar-se de instintos naturais quando agem. Um cachorro, que carinhosamente lambe a mão do dono, não é movido por virtude. Ele age sem noção. Desconhece que pode morder ao invés de lamber. Mas o torturador arranca as unhas do preso e o marido espanca a companheira por maldade; isto é, existia a possibilidade de não fazerem aquilo. Se em qualquer ação forçada, o crime se torna inimputável, o pitbull que destroça a criança não pode ser levado a qualquer tribunal e o pedófilo, sim.
O conceito de liberdade implica em ações não coagidas – ou manipuladas. Um ato só é virtuoso ou viciado se existir a possibilidade de eleger o oposto. É possível afirmar: liberdade é vocação. Deus decidiu criar o mundo para a liberdade. Seu intento único é amar; e liberdade é atributo do amor. Deus não criou por carência. Ele escolheu rodear-se de pessoas que pensam, sentem e decidem não porque necessitava dar satisfação a outra divindade ou para cumprir alguma demanda misteriosa. Deus criou porque sua natureza essencial é amar.
A Bíblia expressa com clareza: Deus é amor. Quem ama busca relacionar-se. E relacionamento significa valorizar o outro. Deus estima tanto que se expõe e se vulnerabiliza. Caso nunca tivesse criado, não lidaria com pessoas imperfeitas. E jamais experimentaria dor e frustração. Em seu apreço, a liberdade humana passa a ser o limite que Deus impõe a si mesmo.
Tal fragilidade pode ser bem compreendida nas metáforas do profeta Oséias e do Filho Pródigo. Nos dois, os amantes se veem em situação embaraçosa. O comportamento tanto da mulher como do filho causam dor; escapam ao controle do marido e do pai. Na parábola, o filho sai de casa. O pai não reage. A porta precisa ficar aberta. Não lhe interessa manter o filho constrangido. Resta ao velho esperar. O profeta se vê na desdita de amar uma leviana, que se prostitui com qualquer um. Sobra perdoar; e aguardar. Quem sabe ela voltará?
Comparando Deus a um imperador, temos uma leve insinuação da relação amor, liberdade. Certo rei dispõe de várias mulheres no harém. Ele, porém, se apaixona por Sulamita. Caso ordene, ela será conduzida à câmara real como objeto de prazer. Mas o monarca não quer desse jeito. Ele a vê em outro patamar. Para isso, precisa conquistar o seu coração. Mais complicado: ele também quer ser dela. Na busca do amor, por mais poderoso que seja, o imperador ficou vulnerável, indefeso.
Deus deseja cativar. Ele anseia por filhos, por amigos. E também quer ser nosso. Os amantes não se forçam. Impor-se e amar não combinam.
Deus é frágil? No amor, sim. Mas afirmar isso não o enfraquece, apenas descreve o poder do amor. O sofrimento de Deus não diminui a sua grandeza, apenas distingue o Aba de Jesus dos ídolos gregos. O sentimentos divinos ajudam a entender: o poder mais maravilhoso do universo não usa da coerção, ele é a plenitude dos afetos.
Jesus encarnou Deus e vimos as suas lágrimas. No Galileu, Deus se revelou empático. Por causa do Nazareno, ficou impossível conceber que a divindade tudo ordena, tudo dispõe e tudo orquestra. Não existe um deus que toca projetos sem levar em consideração as pessoas, que ele jura amar. Para promover a sua glória, Deus não tece sorrateiramente os fios da história. Não há subterfúgio em seu caráter.
As carnificinas de Aushwitz, Ruanda e Iraque não foram planejadas em algum tempo remoto. Deus não guia a bala perdida que mutila a criança na favela. A lógica que tenta transformar Deus em títere, que às vezes deixa os eventos correrem frouxos, é cruel. Se, para capitanear a história Deus fecha os olhos (vontade permissiva), ele é maquiavélico. Se orquestra horrores como etapas necessárias para cumprir uma ”vontade soberana”, ele é monstruoso. Um deus cruel, maquiavélico e monstruoso não merece ser adorado.
Começo, meio e fim da história não estão prontos. Se Deus se sente feliz em gerenciar cada nano evento e se preordenou, em sua providência, todos os fatos, a humanidade vive uma farsa. E se tudo está pronto: busca de justiça, indignação contra o mal e solidariedade não passam de iniciativas fúteis.
Prefiro aceitar que o mal nunca fez parte de qualquer projeto. O Deus da Bíblia sofre com a morte de inocentes e se indigna com a injustiça que condena bilhões à miséria. Ele ainda conclama homens e mulheres de boa vontade a serem pacificadores.
Não é certo confundir Jesus de Nazaré com o deus frio e distante dos gregos. Determinismo, antônimo de liberdade, anula o amor. Deus não planejou, determinou ou ajudou o rapaz a dar fim à própria vida. Vale bater na mesma tecla: Deus é amor.
“… e a fraqueza de Deus é mais forte do que os homens”. [1Coríntios 1.25].
Soli Deo Gloria
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