Show de Damares: estrela da música religiosa, ela vende dez vezes mais discos que as rainhas do axé Ivete Sangalo e Claudia Leitte |
Paulo Vasconcellos, no Valor Econômico
A maior praça de Guapimirim, cidade de 50 mil habitantes na subida da serra do Rio, a 60 quilômetros da capital fluminense, ficou pequena numa noite de sexta-feira de novembro, para o show da cantora Damares em homenagem aos 22 anos do município. Nona colocada na lista dos dez artistas que mais venderam discos no ano passado, com 400 mil cópias do CD “Diamante”, ela costuma desfilar no palco um cardápio musical variado no ritmo, do pop ao forró, e trivial nas letras, recheadas de substantivos como fornalha, salvação e vitória. Entre uma canção e outra, faz orações com a voz carregada de dramaticidade. A plateia vibra. Alguns não escondem as lágrimas. O cachê, de R$ 25 mil a R$ 50 mil, ainda está longe dos R$ 250 mil cobrados por cantores sertanejos mais estelares, mas trata-se de um nicho novo que garante ao menos dois shows por semana, em geral pagos pelas prefeituras do interior. Neste mês, fez espetáculos em Rolim de Moura e Porto Velho, em Rondônia, e Chapadinha e Arame, no Maranhão.
A paranaense Damares de Alvez Bezerra de Oliveira, de 32 anos, 1,60 m de altura, cabelos pretos longos como convém a uma seguidora da Assembleia de Deus, é a encarnação de um novo gênero de “pop star” no Brasil: o astro da música religiosa. A lista é farta. Reúne tanto católicos quanto evangélicos. São artistas que só perdem na vendagem de CDs e DVDs para cantores e cantoras seculares, como Luan Santana ou Paula Fernandes, e deixam para trás nomes do porte de Marisa Monte e Caetano Veloso ou até mesmo estrelas internacionais, como Lady Gaga e Justin Bieber. Ivete Sangalo e Claudia Leitte, que nada. Damares vende muitas vezes mais discos que as rainhas do axé.
Quatro dos vinte escritores que mais vendem livros no país são religiosos – dois deles católicos: o padre Marcelo Rossi lidera a lista
O fenômeno se espalha da música para o cinema, da literatura para as mídias digitais. A venda apenas de discos e livros de conteúdo religioso movimenta mais de meio bilhão de reais por ano. A estatística está longe de refletir o tamanho exato do mercado não só por causa da pirataria, mas porque as gravadoras essencialmente religiosas, entre elas a MK Music, que domina 70% do segmento, não comunicam à Associação Brasileira dos Produtores de Disco (ABPD) quantos CDs e DVDs vendem nas igrejas ou nos portais de comércio que mantêm na internet. A estimativa de especialistas é que pelo menos metade do mercado musical religioso brasileiro esteja à margem dos números oficiais. Ainda assim, a produção de artistas católicos e evangélicos, que representa uma fatia de aproximadamente 20% do faturamento anual de R$ 373 milhões da indústria fonográfica nacional, rende cerca de R$ 75 milhões.
Já a literatura religiosa girou sozinha, no ano passado, R$ 483,7 milhões. É exatamente 10% de todo o mercado editorial brasileiro, que atingiu um faturamento de R$ 4,8 bilhões, de acordo com uma pesquisa da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas da Universidade de São Paulo (Fipe/USP) e da Câmara Brasileira do Livro (CBL). Embora tenha registrado queda de 5,99% no faturamento em 2011, na comparação com 2010, o segmento de livros religiosos acumulou um aumento de 18,9% nas vendas entre um ano e outro, atrás apenas da vendagem dos livros científicos, técnicos e profissionais, que cresceu 33,9%.
Não há milagre. Os evangélicos, que se multiplicam a uma taxa de mais de 6% a cada censo do IBGE, somam 42 milhões de consumidores potenciais e fiéis a tudo o que a igreja produz. É o que explica parte do desempenho de “Nada a Perder”. Primeiro dos três volumes da biografia do bispo Edir Macedo, o livro publicado pela editora secular Planeta vendeu 500 mil exemplares do lançamento, em agosto, ao Natal. Pela velocidade com que sai das estantes das livrarias deve fechar o ano atrás apenas do best-seller internacional “Cinquenta Tons de Cinza”. Cristiane Cardoso, filha do líder da Igreja Universal do Reino de Deus, é a única que pode ameaçar o reinado literário do empresário religioso. “Casamento Blindado”, que ela escreveu a quatro mãos com o marido e foi publicado pela Thomas Nelson Brasil, já vendeu meio milhão de exemplares.
Padre Marcelo Rossi (à esq.), autor de “Ágape”, e o bispo da Diocese de Santo Amaro, d. Fernando Figueiredo: livro já teve 8,4 milhões de exemplares vendidos desde 2010 até o Natal |
Os católicos, que crescem menos a cada censo, mas ainda são mais de 130 milhões de brasileiros, reagem com estrelas da Renovação Carismática. De acordo com o acompanhamento do portal Publishnews sobre o mercado editorial, 4 dos 20 escritores que mais vendem livros no país são religiosos – 2 deles católicos. O padre Marcelo Rossi lidera a lista, com 8,4 milhões de exemplares de “Ágape” vendidos até o Natal desde que foi publicado, em 2010, pela também secular Globo Livros. “Agapinho”, versão infantil das reflexões do autor sobre passagens bíblicas, atingiu em um ano a marca de 800 mil exemplares vendidos. O padre Fábio de Mello, com 380 mil exemplares de “Tempo de Esperas” (Planeta), é o 18º do ranking. E, seguindo a máxima de que a união faz a força, o disco e o DVD “Ágape Amor Divino”, de Rossi, Mello e convidados, venderam juntos, até a semana passada, 700 mil exemplares, em apenas seis meses desde o seu lançamento.
No cinema, novas produções estão em andamento com a promessa de aquecer ainda mais os negócios, como o filme sobre irmã Dulce
O espiritismo, que tem apenas 3,8 milhões de seguidores, mas com os mais altos níveis educacionais entre todas as religiões, de acordo com o Censo 2010, também garante sucessos do outro mundo. Na literatura, com Zíbia Gasparetto, que soma mais de 16 milhões de livros vendidos, e com Mônica de Castro, que já alcançou 1,6 milhão de exemplares dos romances psicografados que ela mesma edita. No cinema, com “Nosso Lar”, baseado na obra psicografada pelo médium Chico Xavier, que faturou R$ 36 milhões e está em quinto lugar entre as dez maiores bilheterias nacionais nos últimos 20 anos, e com a cinebiografia “Chico Xavier”, vista por 3,4 milhões de pessoas, que ocupa a oitava posição.
Em contraposição ao conservadorismo comum a boa parte das denominações cristãs e também ao espiritismo, a produção religiosa se vale cada vez mais das ferramentas de marketing para ganhar qualidade. Igrejas e pastores estão entre os clientes de uma empresa de design em São Paulo que trabalha para melhorar a imagem que eles têm entre fiéis e consumidores. A inovação tecnológica também ganha força na disputa de mercado. A mídia digital aos poucos vai sendo incorporada ao arsenal disponível para atrair novos discípulos e aumentar as vendas. Mais de 15% do faturamento de gravadoras seculares que ingressaram no segmento, como a Sony Music e a Som Livre, vêm do mercado digital, ainda incipiente por aqui na comparação com os Estados Unidos, onde chega a 52%. O devoto que quer acompanhar um culto com um exemplar da “Bíblia” à mão já pode baixá-lo direto no celular. Algumas igrejas evangélicas permitem acompanhar a transmissão de cerimônias religiosas ao vivo no conforto de casa pela internet.
O bispo Edir Macedo: primeiro de três volumes de sua biografia, “Nada a Perder” já vendeu 500 milhões de exemplares desde o lançamento, em agosto, até o Natal |
“O mercado sertanejo, que tem um público menor, cresceu muito mais porque falta a católicos e evangélicos uma visão de mercado para aproximar o produto religioso do consumidor secular”, diz o teólogo Antonio Kater, fundador do Instituto Brasileiro de Marketing Católico. “O mercado editorial religioso sempre foi forte, mas só passou a frequentar a lista dos mais vendidos depois que seus livros conquistaram espaço nas grandes redes de livrarias”, afirma Carlo Carrenho, proprietário do portal Publishnews. “‘Ágape’ inaugurou uma onda de livros religiosos, mas não há nenhuma intenção de a editora criar um selo específico para atender a esse mercado”, afirma Mauro Palermo, diretor da Globo Livros. “A música religiosa não é um gênero de moda, como a lambada ou o axé, mas um novo comportamento de parcela significativa da população que vai conquistando lugar até nas feiras dominadas pelos sertanejos”, observa Marcelo Soares, diretor da Som Livre. “A grande diferença hoje é a abertura das mídias seculares. Programas de auditório já disputam as principais atrações religiosas a tapa”, completa Maurício Soares, diretor da área de gospel da Sony Music.
O acirramento da concorrência pode alçar a indústria da salvação a um novo patamar mercadológico. A Geo, plataforma de eventos da Rede Globo, vai ocupar 10 mil m2 do ExpoCenter Norte, em São Paulo, de 17 a 20 de junho, com a primeira Feira Internacional Cristã (FIC). A meta é atrair 200 mil visitantes em torno da produção de gravadoras e editoras evangélicas e de fabricantes de moda e brinquedos especialmente criados para o público religioso. Até agora esse consumidor tinha a ExpoCristã, a maior feira religiosa de negócios da América Latina, que em setembro levou mais de 160 mil pessoas ao Centro de Exposições do Anhembi, também em São Paulo, e movimentou R$ 100 milhões nos sete dias do evento. A FIC pode abocanhar também uma fatia da Feira Literária Internacional Cristã (Flic), promovida pela Associação dos Editores Cristãos do Brasil (Asec), que em sua primeira edição, de 3 a 6 de maio, atraiu cinco mil visitantes ao Espaço de Eventos São Luiz, em São Paulo.
“Já está definido que a Flic do ano que vem vai ocupar um espaço 30% maior que a deste ano e no Anhembi, em resposta à consolidação da taxa de evangélicos no Brasil e à profissionalização de editoras que existiam fazia mais de 40 anos, mas atuavam de forma precária”, diz Sinval Filho, diretor-executivo da Asec. “Nossa entrada no segmento religioso foi provocada pela oportunidade de negócios combinada com a necessidade do público. Havia um espaço a ser ocupado e problemas de organização da concorrência”, observa Leo Ganem, presidente da Geo. “A força da religião evangélica é que ela tem lugar para todos”, afirma Eduardo Berzin Filho, presidente da EBF Comunicações, que organiza a ExpoCristã.
As duas empresas agora separadas pelas feiras já foram unidas pelo Troféu e o Festival Promessas. O prêmio, idealizado pela EBF e realizado há dois anos pela Geo, foi distribuído no dia 5, no Teatro Geo, em São Paulo, aos ganhadores de 11 categorias escolhidos por mais de cinco milhões de votos pela internet. A Rede Globo exibiu o festival, gravado no Campo de Marte, com apresentação de Serginho Groisman e expoentes da música evangélica, como a banda Diante do Trono e a cantora e pastora Aline Barros, a “rainha gospel dos baixinhos”. O programa foi um dos trunfos da emissora na sua programação especial de fim de ano.
O Festival Promessas reuniu 100 mil pessoas em São Paulo: transmitido pela Globo, evento com expoentes da música evangélica foi um dos trunfos de sua programação de fim de ano |
No mercado editorial a guerra é bíblica. Pudera: só a produção do livro sagrado representa uma fatia de R$ 120 milhões por ano. De um lado estão a Casa Publicadora da Assembleia de Deus, denominação religiosa evangélica com nove milhões de fiéis, e a gráfica da Sociedade Bíblica Brasileira (SBB), que em 2011 imprimiu 6,7 milhões de exemplares da “Bíblia”, domina cerca de 70% do mercado e exporta parte da produção para mais de cem países. Na outra ponta estão as editoras Mundo Cristão, que lançou três novos tipos de “Bíblia” neste ano com a pretensão de crescer 15%, e a Thomas Nelson Brasil, parceria da maior editora religiosa dos Estados Unidos com a Ediouro, que tem duas versões especiais com comentários de especialistas planejadas para o ano que vem e ambiciona outros 15%.
“A expectativa é dobrar em quatro anos o faturamento, que deve chegar a R$ 15 milhões em 2012. Queremos ser a maior editora evangélica do país”, afirma Omar de Souza, publisher da Thomas Nelson Brasil. “A Gráfica Bíblica tem 17 anos de tradição e o reconhecimento internacional do mercado”, afirma Erni Seibert, secretário de Comunicação e Ação Social da SBB.
No cinema, novas produções entram em cartaz com a promessa de aquecer ainda mais os negócios. Nada menos que três filmes começam a ganhar forma em 2013. O mais adiantado é sobre “Irmã Dulce”, a beata católica baiana morta há 20 anos que se notabilizou por suas obras de caridade. A produção é da Migdal Filmes, que fez “Nosso Lar” e agora prepara a continuação. “Nosso Lar 2″, baseado em outros livros psicografados pelo médium Chico Xavier, será dirigido por Wagner Assis, diretor também da primeira versão. O cineasta Sérgio Machado, que foi assistente de direção em “Central do Brasil” e assinou o longa-metragem “Cidade Baixa”, já finalizou o roteiro de “Padre Cícero”, inspirado na biografia do líder religioso e político cearense Cícero Romão Batista escrita por Lyra Neto, e espera começar as filmagens em 2013.
O avanço evangélico foi o estopim para a reação carismática, dizem especialistas: a partir daí, os católicos começaram a produzir estrelas de massa
Pelos menos mais dois filmes com temática religiosa e outro assinado pela diretora Ana Carolina sobre as conturbadas filmagens de uma superprodução sobre a primeira missa no Brasil, em 1500, estão prontos para entrar em cartaz ou em fase de finalização. “Três Histórias, um Destino”, inspirado no livro do missionário R.R. Soares, que estreou em novembro em 51 salas, foi visto por 226 mil pessoas, com arrecadação de R$ 1,9 milhão, graças, em parte, à estratégia de mobilização que incentiva um evangélico a levar outro ao cinema.
“O cinema brasileiro descobriu a religião. ‘Nosso Lar’ extrapolou o nicho da religiosidade, mas o mais importante é que o tema parece ser garantia de público, ao contrário de filmes de esporte, que nunca dão bons resultados”, diz o crítico Pedro Butcher, do portal FilmeB, consultoria que monitora o mercado cinematográfico brasileiro. “Existe uma cultura religiosa muito forte no país, mas o que importa é a qualidade da história e o potencial de público que ela pode levar ao cinema”, afirma Iafa Britz, produtora da Migdal Filmes. “‘Nosso Lar’ não foi um filme espírita para um público espírita. Se fosse, não teria sido visto por mais de quatro milhões de pessoas.”
“Estamos diante de um fenômeno que os Estados Unidos já experimentaram: religião é ‘business’, mas aqui quem está produzindo a cultura religiosa não é o religioso. O cantor de igreja que fazia seu disco num estúdio de fundo de quintal agora ocupa o estúdio das grandes gravadoras. O Faustão das cantoras gospel é o templo sempre lotado todas as noites”, diz o teólogo Ed René Kivitz, pastor da Igreja Batista de Água Branca, em São Paulo. “O cristianismo tem um lado acentuado de empreendedorismo econômico e um dos reflexos, hoje, é a corrida entre as igrejas neopentecostais e o movimento carismático da Igreja Católica. Num país com forte sentimento de religiosidade, elas disputam um mercado cada vez mais promissor para a cultura religiosa”, afirma André Ricardo de Souza, professor de sociologia da Universidade Federal de São Carlos e autor do livro “Igreja in Concert”.
Os especialistas concordam que o avanço evangélico foi o estopim, nos anos 1990, para a reação carismática. A partir daí a Igreja Católica também começou a produzir estrelas de massa de aparência impecável e talento de comunicador. Os espíritas, que têm presença histórica nas telenovelas e mais recentemente no cinema, por causa da força da reencarnação no inconsciente coletivo brasileiro, mantiveram distância da disputa. Mas, assim como católicos e evangélicos, também aproveitaram o público cativo para buscar a inserção em outros nichos de mercado, como a autoajuda. A qualidade estética do produto religioso evoluiu com a incorporação em escala ao mercado de consumo, mas o processo, dizem os críticos, nem sempre foi acompanhado da sofisticação no conteúdo do produto entregue ao consumidor. “O livro do padre Marcelo Rossi é mais um amuleto religioso do que uma obra de qualidade. É como ter o terço, mas nunca rezar. É como ter a ‘Bíblia’ e nunca ler”, comenta o teólogo e pastor Kivitz.
“A padronização na oferta de bens processada pelas diferentes tradições cristãs, facilitada pela programação religiosa na mídia, é expressada por práticas comuns na forma de cultuar a fé, de fazer a leitura bíblica e educar os adeptos na reinterpretação das doutrinas e dos costumes e na compreensão da realidade da vida cotidiana. Dizer que a mídia é a grande responsável por esse processo é equivocar-se. A hegemonia pentecostal, o capitalismo globalizado e a lógica do mercado também operaram na produção de uma nova expressão cultural religiosa – a cultura gospel”, defendeu a doutora em ciências da comunicação Magali do Nascimento Cunha no artigo “A Serviço do Rei” da “Revista de Estudos da Religião”.
“Quando Jesus expulsou os vendilhões do templo, já havia uma crítica à mercantilização da religião, mas as pessoas querem estacionamento na igreja, cadeiras estofadas no lugar dos bancos de madeira e ar-condicionado nos templos. O fiel gosta de ser cuidado, mas sempre tem quem teime em separar o espírito da matéria”, afirma o teólogo católico Antonio Kater.