Documentos  inéditos do projeto Brasil: Nunca Mais – até agora guardados no  Exterior – chegam ao País e podem jogar luz sobre o comportamento dos  evangélicos nos anos de chumbo.
No primeiro dia foram oito horas de torturas patrocinadas por sete militares. Pau de arara, choque elétrico, cadeira do dragão e  insultos, na tentativa de lhe quebrar a resistência física e moral. “Eu  tinha muito medo do que ia sentir na pele, mas principalmente de não  suportar e falar. Queriam que eu desse o nome de todos os meus amigos,  endereços… Eu dizia: ‘Não posso fazer isso.’ Como eu poderia trazê-los  para passar pelo que eu estava passando?” Foram mais de 20 dias de  torturas a partir de 28 de fevereiro de 1970, nos porões do Destacamento  de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna  (DOI-Codi), em São Paulo. O estudante de ciências sociais da  Universidade de São Paulo (USP) Anivaldo Pereira Padilha, da Igreja  Metodista do bairro da Luz, tinha 29 anos quando  foi preso pelo temido órgão do Exército. Lá chegou a pensar em  suicídio, com medo de trair os companheiros de igreja que comungavam de  sua sede por justiça social. Mas o mineiro acredita piamente que  conseguiu manter o silêncio, apesar das atrocidades que sofreu no corpo  franzino, por causa da fé. A mesma crença que o manteve calado e o  conduziu, depois de dez meses preso, para um exílio de 13 anos em países  como Uruguai, Suíça e Estados Unidos levou vários evangélicos a  colaborar com a máquina repressora da ditadura. Delatando irmãos de  igreja, promovendo eventos em favor dos militares e até torturando. Os  primeiros eram ecumênicos e promoviam ações sociais e os segundos eram  herméticos e lutavam contra a ameaça comunista. Padilha foi um entre  muitos que tombaram pelas mãos de religiosos protestantes.
O metodista só descobriu quem foram seus delatores há cinco anos, quando teve acesso a  documentos do antigo Sistema Nacional de Informações: os irmãos José  Sucasas Jr. e Isaías Fernandes Sucasas, pastor e bispo da Igreja  Metodista, já falecidos, aos quais era subordinado em São Paulo. “Eu  acreditava ser impossível que alguém que se dedica a ser padre ou  pastor, cuja função é proteger suas ovelhas, pudesse dedurar alguém”,  diz Padilha, que não chegou a se surpreender com a descoberta. “Seis  meses antes de ser preso, achei na mesa do pastor José Sucasas uma  carteirinha de informante do Dops”, afirma o altivo senhor de 71 anos,  quatro filhos, entre eles Alexandre, atual ministro da Saúde da  Presidência de Dilma Rousseff, que ele só conheceu aos 8 anos de idade.  Padilha teve de deixar o País quando sua então mulher estava grávida do  ministro. Grande parte dessa história será revolvida a partir da  terça-feira 14, quando, na Procuradoria Regional da República, em São  Paulo, acontecerá a repatriação das cópias do material do projeto  Brasil: Nunca Mais. Maior registro histórico sobre a repressão e a  tortura na ditadura militar (leia quadro na pág. 79), o material, nos  anos 80, foi enviado para o Conselho Mundial de Igrejas (CMI),  organização ecumênica com sede em Genebra, na Suíça, e para o Center for  Research Libraries, em Chicago (EUA), como precaução, caso os  documentos que serviam de base do trabalho realizado no Brasil caíssem  nas mãos dos militares. De Chicago, virá um milhão de páginas  microfilmadas referentes a depoimentos de presos nas auditorias  militares, nomes de torturadores e tipos de tortura. A cereja do bolo,  porém, chegará de Genebra – um material inédito composto por dez mil  páginas com troca de correspondências entre o reverendo presbiteriano  Jaime Wright (1927 – 1999) e o cardeal-arcebispo emérito de São Paulo,  dom Paulo Evaristo Arns, que estavam à frente do Brasil: Nunca Mais, e  as conversas que eles mantinham com o CMI.
Somente  em 1968, quatro anos após a ascensão dos militares ao poder, o  catolicismo começou a se distanciar daquele papel que tradicionalmente  lhe cabia na legitimação da ordem político-econômica estabelecida. Foi  aí, quando no Brasil religiosos dominicanos como Frei Betto passaram a  ser perseguidos, que a Igreja assumiu posturas contrárias às ditaduras  na maioria dos países latino-americanos. Os protestantes, por sua vez,  antes mesmo de 1964, viveram uma espécie de golpe endógeno em suas  denominações, perseguindo a juventude que caminhava na contramão da  ortodoxia teológica. Em novembro de 1963, quatro meses antes de o  marechal Humberto Castelo Branco assumir a Presidência, o líder batista  carismático Enéas Tognini convocou milhares de evangélicos para um dia  nacional de oração e jejum, para que Deus salvasse o País do perigo  comunista. Aos 97 anos, o pastor Tognini segue acreditando que Deus,  além de brasileiro, se tornou um anticomunista simpático ao movimento  militar golpista. “Não me arrependo (de ter se alinhado ao discurso dos  militares). Eles fizeram um bom trabalho, salvaram a Pátria do  comunismo”, diz.Assim, foi no exercício de sua fé que os evangélicos – que  colaboraram ou foram perseguidos pelo regime – entraram na alça de mira  dos militares (leia a movimentação histórica dos protestantes à pág.  80). Enquanto líderes conservadores propagavam o discurso da Guerra Fria  em torno do medo do comunismo nos templos e recrutavam formadores de  opinião, jovens batistas, metodistas e presbiterianos, principalmente,  com ideias liberais eram interrogados, presos, torturados e mortos. “Fui  expulso, com mais oito colegas, do Seminário Presbiteriano de Campinas,  em 1962, porque o nosso discurso teológico de salvação das almas  passava pela ética e a preocupação social”, diz o mineiro Zwinglio Mota  Dias, 70 anos, pastor emérito da Igreja Presbiteriana Unida do Brasil,  da Penha, no Rio de Janeiro. Antigo membro do Centro Ecumênico de  Documentação e Informação (Cedi), que promovia reuniões para, entre  outras ações, trocar informações sobre os companheiros que estavam sendo  perseguidos, ele passou quase um mês preso no Doi-Codi carioca, em  1971. “Levei um pescoção, me ameaçavam mostrando gente torturada e davam  choques em pessoas na minha frente”, conta o irmão do também  presbiteriano Ivan Mota, preso e desaparecido desde 1971. Hoje professor  da Universidade Federal de Juiz de Fora, Dias lembra que, enquanto  estava no Doi-Codi, militares enviaram observadores para a sua igreja,  para analisar o comportamento dos fiéis.
Segundo Rubem Cesar Fernandes, 68 anos, antropólogo de origem presbiteriana, preso em 1962, antes do golpe, por participar de  movimentos estudantis, os evangélicos carregam uma mancha em sua  história por convidar a repressão a entrar na Igreja e perseguir os  fiéis. “Os católicos não fizeram isso. Não é justificável usar o poder  militar para prender irmãos”, diz ele, considerado “elemento perigoso”  no templo que frequentava em Niterói (RJ). “Pastores fizeram uma lista  com 40 nomes e entregaram aos militares. Um almirante que vivia na  igreja achava que tinha o dever de me prender. Não me encontrou porque  eu estava escondido e, depois, fui para o exílio”, conta o hoje diretor  da ONG Viva Rio.
O protestantismo histórico no Brasil também registra um alto grau de envolvimento de suas lideranças com a repressão. Em sua tese de pós-graduação, defendida na Universidade Metodista de São Paulo (Umesp), Daniel Augusto Schmidt teve acesso ao diário do irmão de José, um dos delatores de Anivaldo Padilha, o bispo Isaías. Na folha relativa a 25 de março de 1969, o líder metodista escreveu: “Eu e o reverendo Sucasas fomos até o quartel do Dops. Conseguimos o que queríamos, de maneira que recebemos o documento que nos habilita aos serviços secretos dessa organização nacional da alta polícia do Brasil.” Dono de uma empresa de consultoria em Porto Alegre, Isaías Sucasas Jr., 69 anos, desconhecia a história da prisão de Padilha e não acredita que seu pai fora informante do Dops. “Como o papai iria mentir se o cara fosse comunista? Isso não é delatar, mas uma resposta correta a uma pergunta feita a ele por autoridades”, diz. “Nunca o papai iria dedar um membro da igreja, se soubesse que havia essas coisas (torturas).” Em 28 de agosto de 1969, um exemplar da primeira edição do jornal “Unidade III”, editado pelo pai do ministro da Saúde, foi encaminhado ao Dops. Na primeira página, há uma anotação: “É preciso ‘apertar’ os jovens que respondem por este jornal e exigir a documentação de seu registro porque é de âmbito nacional e subversivo.” Sobrinho do pastor José, o advogado José Sucasas Hubaix, que mora em Além Paraíba (MG), conta que defendeu muitos perseguidos políticos durante a ditadura e não sabia que o tio havia delatado um metodista. “Estou decepcionado. Sabia que alguns evangélicos não faziam oposição aos militares, mas daí a entregar um irmão de fé é uma grande diferença.”
Nenhum religioso, porém, parece superar a obediência canina ao regime  militar do pastor batista Roberto Pontuschka, capelão do Exército que à  noite torturava os presos e de dia visitava celas distribuindo o “Novo  Testamento”. O teólogo Leonildo Silveira Campos, que era seminarista na  Igreja Presbiteriana Independente e ficou dez dias encarcerado nas  dependências da Operação Bandeirante (Oban), em São Paulo, em 1969, não  esquece o modus operandi de Pontuschka. “Um dia bateram na cela: ‘Quem é  o seminarista que está aqui?’”, conta ele, 21 anos à época. “De terno e  gravata, ele se apresentou como capelão e disse que trazia uma “Bíblia”  para eu ler para os comunistas f.d.p. e tentar converter alguém.” O  capelão chegou a ser questionado por um encarcerado se não tinha  vergonha de torturar e tentar evangelizar. Como resposta, o pastor  batista afirmou, apontando para uma pistola debaixo do paletó: “Para os  que desejam se converter, eu tenho a palavra de Deus. Para quem não  quiser, há outras alternativas.” Segundo o professor Maurício Nacib  Pontuschka, da Pontifícia Universidade Católica (PUC), de São Paulo, seu  tio, o pastor-torturador, está vivo, mas os dois não têm contato. O  sobrinho também não tinha conhecimento das histórias escabrosas do  parente. “É assustador. Abomino tortura, vai contra tudo o que ensino no  dia a dia”, afirma. “É triste ficar sabendo que um familiar fez coisas  horríveis como essa.”
Professor de sociologia da religião na Umesp, Campos, 64 anos, tem  uma marca de queimadura no polegar e no indicador da mão esquerda  produzida por descargas elétricas. “Enrolavam fios na nossa mão e  descarregavam eletricidade”, conta. Uma carta escrita por ele a um  amigo, na qual relata a sua participação em movimentos estudantis, o  levou à prisão. “Fui acordado à 1h por uma metralhadora encostada na  barriga.” Solto por falta de provas, foi tachado de subversivo e perdeu o  emprego em um banco. A assistente social e professora aposentada Tomiko  Born, 79 anos, ligada a movimentos estudantis cristãos, também acredita  que pode ter sido demitida por conta de sua ideologia. Em meados dos  anos 60, Tomiko, que pertencia à Igreja Evangélica Holiness do Brasil,  fundada pelo pai dela e outros imigrantes japoneses, participou de  algumas reuniões ecumênicas no Exterior. Em 1970, de volta ao Brasil,  foi acusada de pertencer a movimentos subversivos internacionais pelo  presidente da Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor, onde trabalhava.  Não foi presa, mas conviveu com o fantasma do aparelho repressor. “Meu  pesadelo era que o meu nome estivesse no caderninho de endereço de  alguma pessoa presa”, conta.


Fonte: O DIÁRIO


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