Por grande parte dos últimos 4.000 anos Deus tem estado criticamente enfermo. Os informes que temos a respeito de sua natureza e função indicam que seus padrões de relacionalidade, afeto e conceitualização tem estado fora do intervalo normal. Para ser específico, Deus tem aparentemente sofrido de esquizofrenia paranóide crônica, ou um severo transtorno de personalidade limítrofe, com episódios erráticos, isto é, não provocados, de psicose. A cadeia de informes dominante indica que ele opera sob a noção psicótica de que está envolvido numa batalha cósmica com outro deus que ameaça frustar, corromper e arruinar a sua obra. Esta é uma síndrome psicótica clássica a partir da qual, segundo os informes, ele forma uma ideação global que molda toda a sua visão de mundo, sendo que não existem dados empíricos, heurísticos ou fenomenológicos que indiquem que esse conflito cósmico ou realidade maligna de fato existam. Sua noção de realidade não tem uma realidade que corresponda a ela. Além disso, esse modelo de ideação é especificamente paranóide, visto que indica que ele acredita que há forças exteriores trabalhando contra ele, quando não há evidência de que essas forças existam. Se os relatos a respeito de Deus são acurados, essas noções são produtos da sua própria imaginação doentia. Deus é um lunático. O Deus da antiga religião israelita, que produziu o judaísmo, o cristianismo e o islamismo, é facilmente diagnosticável sob as rubricas do Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, publicado periodicamente pela Associação Psiquiátrica Norte-Americana.
Deuses doentes geram gente doentia. Ou, para colocar de modo ligeiramente diverso, Deuses doentes fazem com que as pessoas fiquem doentes. Do mesmo modo que filhos e discípulos tomam como modelo seus pais e mentores, indivíduos e comunidades humanas criam a si mesmas na imagem de seus Deuses. Deuses doentes provem modelos doentios que produzem gente doentia e comunidades doentias. Para se garantir bem-estar pessoal e comunitário, é necessário que Deus esteja bem – ou pelo menos o inverso é verdadeiro. Quem tem um Deus doente não tem como alcançar o bem-estar, seja individual ou comunitário.
Talvez você sinta que estou sendo de algum modo severo demais em meu diagnóstico. Permita-me então elencar um arsenal mais palpável de sintomas que, de acordo com os informes dominantes, constituem a síndrome da desordem clínica divina. Relata-se que ele sofre de uma necessidade perfeccionista de ter o seu mundo, bem como todos que acontecem de vagar por ele, cuidadosamente conformado a uma série prescrita de comportamentos e formas de pensar. Isso soa um tanto obsessivo-compulsivo, para dizer o mínimo; particularmente quando se considera que o mundo criado por ele não é uma indústria ou um campo de trabalhos forçados, mas foi projetado por Deus para ser mais como uma estufa, na qual o modo e o objetivo primários são crescimento e desenvolvimento, que requerem por definição um processo constante de mudança e imprevisibilidade. Talvez você não tenha levado os relatos da demanda dele por conformidade sério o bastante para ter sido sensivelmente afetado por esse sintoma patológico, mas que dizer dos relatos de que Deus tem tantos melindres com relação ao comportamento e à natureza dos homens, à exploração e à experimentação humanas, que simplesmente não consegue voltar a colocar a cabeça no lugar até que tenha literalmente matado alguém?
Tomemos por exemplo a comunidade de Noé; ou Onã e seu irmão; ou o exército egípcio no mar Vermelho. Ou pense no ameaçado genocídio dos israelitas no monte Sinai; no genocídio dos cananitas por ocasião da invasão israelita da sua terra; no extermínio do reino do Norte; no exílio do reino do Sul; na morte súbita do homem que tentou proteger a Arca da Aliança; na incineração de Sodoma e Gomorra. Agora se isso não lhe parece um padrão de consumado narcisismo, comportamento cronicamente inapropriado à situação, espírito vingativo sádico, impulsividade e transtorno obsessivo-compulsivo, ira depressiva e irracional, reações sem contato com a realidade e inteiramente desproporcionais aos verdadeiros eventos problemáticos em questão em cada caso – você não tem estado prestando atenção. Ou pelo menos não tem lido a Bíblia regularmente. A síndrome comportamental que acabo de descrever é flagrante psicose. Além disso, que dizer do fato de que o ódio dele a você e a mim, inocentes como somos, ter sido tão intenso que ele concluiu que tinha ou de nos exterminar ou de massacrar seu único filho, Jesus de Nazaré? Se esses relatos são verdadeiros, Deus é um pervertido, e é perigoso. Ele resolve todos os seus impasses decisivos com decisiva violência. Você concorda que é doentio? Qualquer Deus incapaz de agir pelo menos como um ser humano mediano gostaria de agir é um monstro. Deuses monstro geram gente monstro.
Falei de nós como inocentes; você talvez discorde. Reconheço que o único mal que existe no nosso mundo é o mal que fazemos uns aos outros. Porém quando alego inocência quero chamar a atenção para o fato de que nós humanos não pedimos para nascer. Não pedimos para ser limitados. Não pedimos para ser falhos. Não pedimos para existirmos em modo de desenvolvimento e permanecermos portanto inerentemente e inevitavelmente incompletos, em fase de crescimento e de mudança, avançando por tentativa e erro, experimentando e alcançando por vezes becos sem saída morais, relacionais, psicológicos e espirituais. Não pedimos para sermos largados no oceano do espaço-tempo com uma base de dados inadequada, capacidade imatura de juízo e emoções que são com frequência movidas pela nossa ansiedade a respeito de tudo isso. Não pedimos para sermos incumbidos da tarefa divina de decifrar e encontrar significado neste mundo, ao mesmo tempo em que somos compelidos a operar com recursos meramente humanos.
O pior é que as metáforas religiosas que nos foram oferecidas no relato dominante a respeito da natureza e do comportamento de Deus produzem arquétipos inconscientes nos seres humanos, arquétipos que são inconscientemente traduzidos em comportamentos justificados por essas metáforas. Se Deus resolve todos os seus problemas decisivos pelo recurso rápido da violência decisiva, como se pode esperar que nós, seres humanos, ajamos de modo significativamente diferente? Deuses doentes geram gente doentia. Se Deus nos convence da sua noção psicótica de que está envolvido num conflito cósmico cujo o campo de batalha é a história humana e o coração humano, é naturalmente inevitável que iremos desejar, de modo inconsciente ou consciente, ajudá-lo nessa empreitada; estar do lado dele na guerra; empenharmo-nos na causa de Deus contra o infiel, enfrentar os bandidos e exterminar nossos inimigos, da mesma forma que aparentemente Deus faz com os dele.
Esta é a bandeira debaixo da qual foram pelejadas as batalhas do Israel antigo contra os cananitas, e quem sabe também as batalhas do Israel dos nossos dias. Esta é a bandeira debaixo da qual as campanhas cristãs das cruzadas foram pelejadas, e quem sabe também as cruzadas dos cristãos fundamentalistas nos nossos dias. Esta é a bandeira debaixo da qual o Islã conquistou o mundo mediterrâneo nos séculos VII e VIII, e não deve haver dúvida quanto às ambições do al Qaeda nos nossos dias. Um Deus doente gera gente doentia. Como chegaremos a alcançar o bem-estar se Deus está doente? Não chegaremos a alcançá-lo, quaisquer que sejam as circunstâncias.
Houve, naturalmente, outro informe a respeito da saúde mental de Deus, embora tenha sido grandemente desacreditado ao longo da história, com frequência ao ponto de uma desdenhosa incredulidade. Trata-se da alegação de que o relato dominante, que tem estado desde sempre em circulação em todo lugar, não tem na verdade nada a ver com Deus, sendo ao invés disso a doentia projeção de uma série de imaginações humanas muito desautorizadas, autoria de gente inteiramente aterrorizada diante daquilo que é desconhecido e imprevisível na vida: uma projeção de seus próprios terrores sobre a imagem mental idealizada do que achavam fosse Deus. Esse segundo informe sobre a saúde mental de Deus encontra grande dificuldade em competir com o relato dominante, muito embora toda a evidência permaneça, em todo lugar, confirmando a versão alternativa. Essa tem encontrado resistência porque parece humanamente inacreditável: porque alega que Deus é um Deus de graça incondicional para toda a humanidade.
Carl Rogers não considerava inerentemente inacreditável que os seres humanos fossem capazes de exercitar um incondicional apreço positivo uns para com os outros, mesmo se essa postura parece por vezes muito rara e de certa forma não-natural. Porém mesmo ele hesitava grandemente em crer que isso fosse verdadeiro com relação a Deus. Rogers afirmou que abandonou suas raízes evangélicas fundamentalistas porque, como ele via, o informe dominante de Deus como lunático era endêmica a qualquer pensamento religioso. Ele portanto sentia-se capaz de pregar graça humana incondicional, mas não conseguia conceber graça incondicional em Deus. Ele simplesmente não conseguia abraçar Gênesis 12 e 17 e a revolucionária percepção de Abraão daquilo que Deus estava tentando passar para a raça humana: “Estou anunciando que serei Deus para você e para os seus filhos depois de você, por todas as suas gerações como aliança eterna, sem restrições e sem custo embutido. Vocês serão o meu povo e eu serei o seu Deus, e é só isso”.
Carl Rogers não foi capaz de reprimir o clamor do informe dominante em seus ouvidos, a despeito do fato de que era um informe falso, de modo a tornar-se capaz de ouvir a melodia do refrão da graça tocando ao longo de todo o Antigo e do Novo Testamento, declarando como fez o profeta Miquéias (7:18-20): “Qual Deus é como nosso Deus? Ele perdoa a iniquidade. Esquece a transgressão. Não retém a sua ira para sempre. Tem prazer na constância do amor. Tem compaixão de nós. É fiel a nós quando somos infiéis a ele. Ele pisoteia as nossas iniquidades e atira nossos pecados no mar de seu eterno esquecimento. Não só isso, mas também garante que somos perdoados antes de nascermos e antes de sermos capazes de imaginar como nos tornarmos pecadores eficazes”.
Infelizmente, Carl Rogers tem a companhia de grande parte da raça humana ao longo da história, que é incapaz de conceber que Deus não seja insano. Que não consegue conceber que São Paulo sabia de algo essencial a respeito da natureza e do comportamento de Deus quando declarou doxologicamente, “Estou convicto de que nada em toda a criação de Deus pode nos separar do amor de Deus”(Romanos 8:28). Ora, honestamente, esse é um Deus saudável. Deus, o guerreiro, o juiz vingativo, o assassino impulsivo, o maníaco genocida, é um monstro e ninguém deveria honrá-lo. Esse Deus me repugna e deveria nos repugnar a todos. O Deus provedor de graça age de modo apropriado em cada situação, o que é um gradiente chave de uma boa saúde mental. Somos humanos: não pedimos para sermos humanos, não pedimos para nascer, para sermos limitados em nossa base de dados, para sermos criaturas de crescimento e mudança, para sermos pessoas em desenvolvimento que carecem inerentemente explorar e experimentar e imaginar por tentativa e erro. Não pedimos nossa tarefa transcendental e nossos recursos mundanos. Qualquer Deus que não olha pra isso e responde com apreço positivo incondicional é um monstro profundamente doentio. É por isso que João afirma que o Deus verdadeiro é fiel e justo para nos perdoar os pecados (1 João 1:9). Você ouviu? É uma questão de justiça que para gente como nós, imersa em nossa limitada humanidade, a única atitude correta seja a misericórdia. “Como um pai se compadece dos filhos Deus se compadece dos que o temem” (Salmo 103:13). Esse é um Deus saudável.
Estamos reunidos aqui esta noite porque estamos todos interessados no bem-estar do ser humano; de fato, no bem-estar do universo como um todo. Tenho argumentado até agora que nosso bem-estar depende do bem-estar de Deus. Quer dizer, estamos abordando o problema da saúde de Deus e da saúde humana, que traduzi como a questão da graça de Deus e da saúde humana. O que podemos fazer para garantir que o informe sobre a natureza e o comportamento de Deus nos conte a história de uma saúde robusta e de sua inerente boa vontade com relação a nós – assegurando dessa forma que nossa base de operações e nossos pressupostos intensificarão o bem-estar humano, em vez da mentira de que ele é um monstro?
Para colocar essa questão de uma forma mais operacionalmente clínica e científica, de que modo podemos trazer boa teologia e psicologia responsável para gerarem aquela estirpe de interação autêntica em que ambas se iluminam mutuamente de modo a elucidar nossa interpretação da natureza humana, aquilo que Gerkin chamou de o Documento Humano Vivo, de modo a indicarem aquilo que poderá produzir genuíno bem-estar em nosso corpo, mente e alma – ou seja, em termos materiais e econômicos, acadêmicos e intelectuais, estéticos e espirituais? Estou inteiramente convicto de que psicologia e espiritualidade são dois nomes para o mesmo domínio. Cada um tem seu universo de discurso e, portanto, seu próprio modus operandi, mas os domínios da psicologia e o da espiritualidade são o mesmo: o complexo arsenal de aspectos críticos que moldam a irreprimível busca humana por significado mundano e transcendental.
Qualquer psicólogo que não leve a sério a luz que a espiritualidade humana pode trazer para a disciplina científica da psicologia simplesmente não está levando verdadeiramente a sério a sua profissão ou a sua psicologia. Qualquer teólogo que não leve a sério a luz que a psicologia pode trazer para a disciplina científica da teologia simplesmente não está levando verdadeiramente a sério a sua profissão e a sua espiritualidade.
As ciências da psicologia e da teologia, praticadas de modo próprio e responsável, interagem inevitavelmente em quatro níveis científicos: desenvolvimento teórico, modelos de pesquisa, gerenciamento de dados e aplicação clínica. Em cada um desses níveis está sendo formado e operando o modelo antropológico no qual psicologia e teologia interagem. Cada uma traz uma luz distintiva para uma verdadeira e abrangente elucidação do Documento Humano Vivo, que é o objeto da obra científica de ambas. Além disso, dentro do modelo antropológico no qual interatuam psicologia e espiritualidade (ou seu instrumento científico, a teologia), é a teoria da personalidade sendo formada e operada que é o foco central da iluminação mútua que as duas ciências oferecem.
Uma ilustração do que isso implica e do modo como funciona pode ser desenvolvida com base na antiga narrativa bíblica que em sua interpretação história parece indicar que Deus é doente, estabelecendo uma metáfora religiosa que tem produzidos arquétipos humanos e seres humanos verdadeiramente doentios ao longo de 3.000 anos. Trate-se da história, em Gênesis 3, da queda de Adão e Eva, de sua expulsão do idílico mundo do Éden e de sua maldição por Deus.
Há outro modo de se ler essa história. Como está, trata-se da recontagem em terminologia hebraica de um mito mesopotâmico de fertilidade muito mais antigo. Ali estão a árvore frutífera, a virgem que seduz e é seduzida, o símbolo fálico da cobra e a tripla sedução: a cobra e Eva seduzindo uma à outra e Eva que seduz Adão. Lida literalmente, em termos de longas tradições teológicas, trata-se de um relato relativamente superficial de que nossos primeiros antepassados desobedeceram uma ordem divina ao mesmo tempo específica e arbitrária, Deus ficou indignado, expulsou-os do Paraíso e os amaldiçoou. Esse é o Deus monstro.
Se alguém quiser saber porque os antigos hebreus gostaram dessa história e porque adotaram-na, a reposta deve ser óbvia: eles tinham um Deus monstro. Experimentavam o mundo como profundamente conflitante e em conflito, e tinham a opção de acusar Deus de tê-lo criado daquele modo (como fizeram na narrativa mais antiga de Gênesis 6) ou de tirar Deus da reta acusando a si mesmos. A única verdade que conheciam nisso tudo era de qualquer um que lesse a história reconheceria imediatamente que ela descreve a nossa experiência de vida. A vida é cheia de conflitos, sentimo-nos inadequados e envergonhados diante disso, ansiamos por amor e por significado, sentimo-nos profundamente inquietos com relação a nossa sexualidade e nossa espiritualidade, sentimo-nos expulsos ou alienados de nosso verdadeiro destino e ansiamos por nosso pai mas somos incapazes de agarrar a sua mão. Eles intuíram que a história de algum modo produzia ressonância genuína com algumas de nossas piores perplexidades: somos almas perdidas e vivemos em perplexidade. O que eles não sabiam é que havia outro modo de se lê-la.
Eles tomavam como certa que a narrativa dominante de um Deus ameaçador representava o modelo da realidade. No entanto, se relacionamos o outro informe com esta narrativa e a iluminamos com uma perspectiva psicológica judiciosa, fica evidente de imediato que está é uma história sobre a inevitável adolescência da raça humana. É uma história sobre deixar o útero e o berçário, sobre explorar as possibilidades de nossa própria individualidade, descobrir o conhecimento de nosso potencial para o bem e para o mal e desvelar para nós mesmos o significado da sexualidade, da espiritualidade e da individuação. Com a iluminação mútua de uma psicologia abalizada e de uma boa teologia, essa narrativa torna-se a poética sugestão de que Adão e Eva careciam afirmar a sua individualidade contra as restrições da autoridade parental, até mesmo divina, a fim de encontrarem seus verdadeiros eus. O enigma da narrativa de Gênesis 3 está na percepção de que a queda foi um ato necessário de crescimento, e levanta a questão de se o processo de adolescência em pessoas e comunidades é melhor realizado através de evolução ou de revolução.
Adão e Eva escolheram a revolução. A narrativa, quando propriamente iluminada por boa teologia e boa psicologia, não é a história de Deus amaldiçoando-os por causa disso. É uma narrativa sobre viver com as inevitáveis consequências das escolhas necessárias e inevitáveis que o crescimento requer; escolhas que devem ser feitas sem um conhecimento adequado do futuro, sem uma compreensão adequada de nossas opções e alternativas e sem conhecimento suficiente sobre a ambiguidade da responsabilidade adulta. As observações de Deus diante da fuga deles da infância não é uma maldição prescrita mas um destino prescrito: a saber, a vida adulta não é moleza.
Uma apropriada iluminação mútua de nossas metáforas psico-espirituais e dos arquétipos que ela produz pode nos proporcionar um Deus saudável que proporciona gente saudável. Digo isso não como uma litania litúrgica. Digo como fato clínico operacional. O bem-estar humano depende de boa teologia e de sólida psicologia para a produção de uma espiritualidade integral – e aqui falo de espiritualidade não como mero mito transcendental. Falo dela como função da pessoa interior em sua busca para que aquele Documento Humano Vivo seja inscrito por completo com as cadências de poesia e de música de significado que produzam genuína completude. Falo de uma estirpe de bem-estar que é aquela plenitude de individualidade e de comunidade, que deriva de um abrangente e gratificante senso de significado de vida, individualmente e relacionalmente.
Isso é possível para nós todos e para toda a humanidade; é possível para você e para mim, para o George Bush, para o al Qaeda, para os democratas – até para os franceses. É claro que os 15% da humanidade que sofrem de uma severa psicose limítrofe herdada não podem ser abraçados por essa perspectiva, exceto sob medicação adequada. O desenvolvimento de uma estratégia psico-espiritual, acompanhada de um programa psico-social concomitante que reflita uma profunda perspectiva graciosa de apreço positivo e incondicional mútuo, contra o pano de fundo da convicção de que essa postura de graça incondicional é a verdadeira história a respeito de Deus, tem chance de moldar nossos pressupostos sobre teoria da personalidade e antropologia de modo a formar um novo modelo global de relacionalidade construtiva. Isso é essencial para o bem-estar humano e sem ele prosseguiremos na trajetória descendente de processos que acentuem cada vez mais a cartada da violência. Isso deve estar fundamentado num modelo psico-espiritual saudável. Os fundamentalistas islâmicos fizeram-nos finalmente um grande favor, a saber, acenaram diante de nós com um sinal claro de que o que molda o significado humano é a questão de se Deus está doente ou saudável.
O modo honesto de se ler a história de Deus na perspectiva psico-espiritual reconhece que o problema da ausência de bem-estar na experiência humana, da disfunção humana, não é problema do pecado, na construção moderna e moralista do conceito, mas o problema da enfermidade, da inadequação e da incompletude humanas diante das responsabilidades da vida e dos desafios da devoção.
Um modelo operacional desse tipo de relacionalidade pessoal e global tem pelo menos as seguintes dez características práticas. Primeiro, a encarnação, dentro da individualidade de cada um que se importa com essa nova iniciativa, da aceitação incondicional do adversário e do outro diferente, onde quer que essa pessoa ou comunidade se encontre neste momento em seu estado de saúde ou de perversidade de espírito. Segundo, uma profunda empatia que coloque a pessoa que se importa dentro do sistema de referência da pessoa ou comunidade diferente ou alienada (leia-se o al Qaeda, por exemplo). Isso levará a pessoa interessada a discernir as fontes e a natureza das obstruções à relacionalidade cheia de graça enfrentadas pelo outro diferente, bem como a sugerir possibilidades para que se vença essa alienação. Essa graça incondicional proporciona à pessoa ou comunidade alienada o potencial para um novo senso de auto-estima, de significado salutar e de uma narrativa divina saudável. Terceiro, essa iniciativa provê tanto pessoas quanto comunidades com um senso de mutualidade na busca por bem-estar. Quatro, implica no reconhecimento de que o iniciador compassivo adentra a relação com suas próprias deficiências humanas.
Quinto: nesse contexto, existe a chance para que se torne evidente que a visão de mundo da pessoa ou da comunidade que demonstra compaixão expresse uma ambição abrangente pela integridade de todo o mundo de seres humanos e de coisas, e que o bem-estar do outro diferente está sendo buscado nesse cenário. Sexto, isso deveria tornar aparente que o crescimento mútuo de pessoas e comunidades é uma possibilidade real e esperada. Sétimo, ambos irão perceber operacionalmente a extensão em que o bem-estar humano depende da saúde do Deus concebido por cada um. O Islã teve longos séculos de uma visão de Alá que inspirou uma cultura e uma relacionalidade ricamente salutar com judeus e cristãos. A grandiosa sociedade islâmica espanhola é um exemplo. Oitavo, podemos antecipar que essa estratégia evocará aquele nível de segurança e confiança que coloca de lado modelos defensivos em ambos os lados e supera as obstruções à mutualidade, ao crescimento, à integridade e ao bem-estar. Nono, tanto pessoas quanto comunidades perceberão que estão sendo afirmadas e levadas a sério. Décimo, a efetividade dessa jornada de apreço positivo incondicional pode ser medida e criticada em uma perspectiva psico-espiritual a cada passo do caminho, à luz da expectativa de que a concretização última do bem-estar mútuo será efetivada como maturidade psico-espiritual, com todos os benefícios materiais e econômicos, acadêmicos e espirituais, estéticos e espirituais que representam a verdadeira plenitude.
O presente conflito mundial, que tem assumido a forma de violência internacional e de terrorismo, é atualmente a maior ameaça ao bem-estar humano. Esse perigo é acompanhado pelo aterrorizante avanço da AIDS e pelo desperdício de recursos que poderiam ser investidos em promover avanços nas áreas da medicina, da saúde mental, da educação e da criação de uma cultura de estética em nosso mundo. Todos esses terrores continuam a violar e a solapar o bem-estar humano, devido a nossos modelos e arquétipos psico-espirituais conscientes e inconscientes, todos formados ao longo dos eixos da vingatividade, das estratégias toma-lá-dá-cá para a resolução de conflitos, do estabelecimento de barreiras entre pessoas e comunidades através de uma disciplina forçada sobre elas, de enfrentar força com força, de fazermos aos outros o que não queremos que nos façam e de nos certificarmos, a partir da doutrina da defesa preventiva, de fazê-lo primeiro. Esses arquétipos de lutar com fogo contra fogo são produtos de metáforas inconscientes de que o mundo opera inflexivelmente deste modo, de que o universo opera inflexivelmente deste modo, de que Deus opera inflexivelmente deste modo. Se você tem um grande problema, recorra a violência decisiva. Deus faz assim, porque não deveríamos? É como as coisas funcionam. Deus ficou tão indignado conosco que não conseguiria voltar a colocar a cabeça no lugar até ter matado alguém, ou nós ou seu único filho. Este é o modo familiar em que as coisas estão configuradas.
Anton Boisen, Seward Hiltner e Donald Capps propuseram uma trajetória de modificação da pessoa interior através da reformulação dos modelos de comportamento exterior. Eles esperavam que isso fosse eventualmente produzir uma mudança interior. John Carter, Bruce Narramore e H. Newton Malony preconizaram uma reforma de nossa função interior pela reestruturação do sistema de referência moral através da combinação de uma teologia bíblica de certa forma literal e de uma psicologia psicodinâmica. Eles acreditavam que os farás de a tradição do Deus monstro dariam conta da tarefa. Sigmund Freud, Carl Jung e Eugen Drewermann achavam que a psicologia psicanalítica seria capaz de recanalizar a função de nossos arquétipos interiores. O trabalho de todos esses tem suas utilidades, mas não chegam a alcançar os profundos desafios estruturais nos quais a verdadeira obra precisa ser realizada. O al Qaeda continuará a encontrar modos de lutar por Alá enquanto persistir a crença de que Alá é um Deus do jihad e da fatwah, o extermínio de infiéis na Umma muçulmana. Esse não é um empreendimento diverso das cruzadas do século XII, e seu Deus guerreiro que ansiava que seus servos “libertassem a Terra Santa do Turco Infiel”. Não é preciso ponderar-se muito sobre a origem dos espíritos das cruzadas contemporâneas. Também não é diverso da convicção israelita de que deflagravam a limpeza étnica de Canaã no século XII a.C. porque esse era o mandamento de Deus. É alarmante entender que foram os israelitas contemporâneos a inventarem a noção perversa de defesa preventiva.
Não quero aqui propor qualquer trivialização ingênua do problema, tentando psicologizá-lo ou espiritualizá-lo com uma superficialidade de Escola Dominical. Também não quero subestimar o tamanho do desafio. Quero que minha proposta se alinhe mais com o racionalismo agressivo e prático de Ayn Rand do que com a sentimentalidade manipulativa do litigioso e débil liberalismo norte-americano.
Não atingiremos o bem-estar humano até que tenhamos criado uma cultura mundial de bem-estar. Não conseguiremos isso até que Deus esteja bem. Uma cultura mundial de bem-estar implica um mundo de metáforas psico-espirituais que produzam arquétipos inconscientes salutares. Para conseguirmos isso devemos destruir o doentio Deus monstro que reina inconscientemente no coração de todos nós. Os programas de reformulação psicológica e moral valem o trabalho que dão. Freud e Jung ofereceram-nos ajuda valiosa. Porém é o Deus monstro que deve ser exorcizado e morto, se quisermos avançar rumo ao mundo de bem-estar que somos capazes de imaginar, em vez do mundo letal que tendemos continuamente a criar.
J. Harold Ellens, PhD
Universidade de Michigan
Universidade de Michigan
Vi na Bacia das Almas
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