Precisamos da Reforma Protestante hoje, é uma afirmativa que estou fazendo. Não precisamos de uma “nova reforma”,   mas de nos apropriarmos, com sinceridade, com determinação, com   convicção, com discernimento, com coragem, com atualização, da sua   herança, tornando-a não somente autêntica, mas renovada, atual e   relevante.
Introdução
Falo  essa noite a uma plateia de protestantes, e falo como  protestante.  Falo em um País onde as estatísticas referentes ao número  de fiéis de  igrejas que pretendem algum vínculo com o Protestantismo não  para de  crescer, Censo após Censo, quando começamos praticamente de  zero, ao  nos tornar uma nação independente em 1822. Um dos grandes  debates entre  sociólogos da religião e estatísticos é quando iremos  parar de  crescer, ou se iremos parar de crescer. O Protestantismo é um  dado  relevante não somente no Brasil, mas em toda a América Latina.
Por  sua vez, o Congresso Lausanne III, realizado na Cidade do Cabo,  África  do Sul, em outubro do ano passado, reunindo clérigos e leigos da  mais  ampla diversidade denominacional, foi uma demonstração evidente de  que o  Cristianismo é uma religião que, finalmente, se tornou um fenômeno   global, mas de que o Protestantismo é, em grande parte, o responsável   para que o Evangelho esteja sendo pregado a quase todas as nações. O   ímpeto missionário protestante não tem diminuído, mas se diversificado.
Dentro  de seis anos, exatamente, em 31 de outubro de 2017, estaremos,  em todo  o mundo, comemorando os 500 anos da Reforma Protestante do  Século XVI.  500 Anos, cinco séculos, meio milênio, é um bocado de tempo.  Algumas  organizações eclesiásticas e intereclesiásticas internacionais  já estão  elaborando uma vasta programação, de celebração, de avaliação e  de  projeção. Essa Semana Teológica Água da Vida, de  fato, vive um  momento de pioneirismo, como que dando o pontapé inicial. E  o fazemos  na Baía da Guanabara, onde, ainda no século XVI, aportaram os  pioneiros  huguenotes, onde foi celebrada a primeira Santa Ceia  protestante nas  Américas, e onde foi elaborado o primeiro documento  doutrinário  reformado nesse Novo Mundo, a Confissão de Fé Fluminense.
Tornei-me,  pessoalmente, um protestante, por convicção e opção, três  anos após a  minha conversão, ao professar a minha fé em uma Igreja  Luterana, no  Culto alusivo à Reforma, como um dos momentos culminantes  de uma  jornada espiritual, que continua até hoje. Escrevi, certa vez, em  um  jornal secular de grande circulação, considerar o 31 de outubro de 1517 a data mais importante da Igreja depois do Dia de Pentecostes. E continuo considerando.
Movida por Deus, mas realizada por homens, nas palavras de Martinho Lutero, “simultaneamente justificados e pecadores” (‘simul justus et pecator’)   a Reforma foi responsável por grandes feitos e por grandes erros. A   nós, hoje, em um constante processo de atualização, nos cabe a honra de   reproduzir os grandes feitos, e corrigir e não repetir os grandes  erros,  nessa Reforma que está permanentemente se reformando, não em seu   conteúdo, mas, exatamente, em suas formas, seus métodos, suas   abordagens, suas ênfases, suas contextualizações, suas linguagens, suas   polêmicas e suas apologéticas.
Repudio,  com o máximo de veemência, os que a acham ultrapassada,  vencida, uma  página da História que está a ter as suas páginas viradas  para sempre.  Lamento aqueles – inclusive em nosso País – que dela passam  a se  envergonhar e a negar, quando, muitos desses, um dia vibraram com o  seu  legado e se orgulharam da sua identidade.
Precisamos da Reforma Protestante hoje, é uma afirmativa que estou fazendo. Não precisamos de uma “nova reforma”,   mas de nos apropriarmos, com sinceridade, com determinação, com   convicção, com discernimento, com coragem, com atualização, da sua   herança, tornando-a não somente autêntica, mas renovada, atual e   relevante.
A  Igreja, como Povo da Nova e Eterna Aliança, Novo Israel, novo Povo  de  Deus de todos os povos e para todos os povos, foi criada no coração  do  Nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, como portadora das Boas Novas e   sinal, primícia e vanguarda da Nova Humanidade, tendo sua inauguração   no Dia de Pentecostes sob o poder do Espírito Santo, e tem estado   presente de forma ininterrupta na História por dois mil anos, e assim   estará, com Ele presente, até a consumação dos séculos.
Portanto,  a História da Igreja não começa no Século XVI, mas no  século I. Não  começa com as 95 Teses de Lutero, mas com o discurso de  Pedro. Não  começa em Wittemberg, mas em Jerusalém. E, muito antes do  Imperador  Constantino, no quarto século, a Igreja já tinha se espalhado  por todo o  mundo civilizado de então; já tinha definido o Cânon do Novo   Testamento e ratificado o Cânon judaico do Antigo Testamento; já tinha   definido o conteúdo das doutrinas básicas emanadas dessas Escrituras: a   Santíssima Trindade, as duas naturezas, o nascimento virginal, a morte   vicária, a ressurreição, a natureza da Igreja, o Retorno do Senhor e o   Juízo Final, o Novo Céu e a Nova Terra; já tinha definido os  Sacramentos  do Batismo e da Eucaristia; já tinha estabelecido  ministérios de  bispos, presbíteros e diáconos; já tinha estabelecido um  padrão do  governo e deliberação nos Concílios. E, tudo isso, sob a  fórmula “pareceu-nos bem ao Espírito Santo e a nós”.
As  bases fundamentais da Igreja nada têm a ver com Constantino, mas  foram  estabelecidas antes dele, nesse legado pensado, ensinado e  transmitido  pelos Apóstolos, pelos Pais Apostólicos e pelos Pais da  Igreja. E era  assim que os Reformadores Protestantes acreditavam. Eles  nunca  pretenderam criar uma nova igreja, fundar uma nova igreja, mas  reformar  a Igreja de sempre, Una, Santa, Católica e Apostólica. Eles  repudiavam  o romanismo, não o catolicismo, a fé universal histórica.  Eles não  traziam nada de novo senão a reafirmação do antigo e do eterno.  Os  Reformadores olhavam para o Oriente, onde estavam as Igrejas   Bizantinas, as Igrejas Pré-Calcedônias (ou Jacobitas), as Igrejas   Assírias (ou Nestorianas) e as Igrejas Uniatas (autônomas, mas   vinculadas a Roma), e olhavam para o Ocidente, para a Igreja Romana ou   Latina, e lamentavam e repudiavam os seus “erros, desvios e superstições” acumulados ao longo dos séculos, pretendendo questioná-los e expurgá-los, mas, unanimemente as consideravam como “ramos autênticos da única Igreja de Cristo”. E não era outra a sua visão em relação às manifestações proto-reformadas, como os valdenses e os hussitas ou moravianos.
Resgatar  hoje a Reforma Protestante é resgatar essa visão dos  Reformadores  sobre o que acontecera antes deles, e, em decorrência, é  repudiar,  repito, repudiar, como uma terrível heresia, que nos trouxe  danos  incomensuráveis, a teoria que afirma uma suposta “apostasia geral da Igreja”,   como se o Espírito Santo tivesse se ausentado da terra entre a morte  de  João e o nascimento de Lutero. Calvino, Lutero, Cranmer – todos eles  –  jamais pensaram assim, e condenariam quem pensasse assim, mas  assumiam o  passado e afirmavam a presença ininterrupta do Espírito  Santo. Todos  eles se referiam aos Concílios e aos Pais da Igreja. As  Confissões de Fé  da Reforma, por sua vez, reafirmam todos os artigos do  Credo dos  Apóstolos e do Credo Niceno, ampliando e aprofundando alguns  temas,  especialmente a autoridade das Sagradas Escrituras, a  centralidade do  sacrifício de Cristo e a salvação pela Graça mediante a  Fé.
Em primeiro lugar  desse olhar positivo sobre todo o  passado, desse assumir todo o  passado, desse assumir toda a História, o  que nos faz continuar  críticos dos “desvios, erros e superstições”,  mas que nos  deveria fazer, também, respeitosos e abertos a aprender com  as antigas  Igrejas não-reformadas, e a dizer que, nos quinze séculos  anteriores à  Reforma, a cada domingo que se celebrava a Ressurreição e  se recitava  os Credos, ali estava – com todas as suas limitações – a  Igreja de  Cristo e não a apostasia do anti-cristo. Os embates travados  nesse  continente com a Igreja Romana, e os longos períodos de  perseguição e  discriminação, tornou a comunidade protestante mais  vulnerável a aderir  à heresia da “apostasia geral da Igreja”, e  hoje, afirmando as  nossas convicções protestantes, repudiamos essa  heresia e reafirmamos o  pensamento dos nossos antepassados na fé.
Em segundo lugar  quando substituímos a autoridade  das Sagradas Escrituras pelo  racionalismo, de um lado, ou pelas  revelações particulares e pelas  experiências, do outro lado. Sola Scriptura,  é uma Bíblia crida,  aberta e exposta, como Palavra de Deus, nada  ensinando ou requerendo  que seja crido que por ela não se possa provar,  quando substituímos a Sola Gratia pela Lei e pelas Obras, nas exigências legalistas e moralistas dos usos e costumes, quando substituímos a Sola Fide como dom de Deus que recebe a Graça, por um “pensamento positivo” que impõe ao céu a sua saúde e a sua prosperidade.
Começamos  a Reforma com seis ramos do Cristianismo e a terminamos com  uma dúzia  apenas, pois o denominacionalismo não havia ainda surgido, e  nem o  termo “denominação” era sequer conhecido ou usado,  porque, nem  está na Bíblia, nem está nas Confissões de Fé Reformadas;  nem está nos  escritos dos Reformadores, porque eles repudiavam como  pecados contra o  Espírito Santo, tanto as heresias, que atentam contra a  verdade,  quanto os cismas, que atentam contra a unidade.
A  Bíblia foi traduzida para um número cada vez maior de idiomas,   escolas, universidades, hospitais foram espaços concretos do amor de   Cristo às nações, o analfabetismo foi reduzido, vidas foram   transformadas, culturas foram impactadas, o trabalho foi valorizado, a   família afirmada, bem como a dignidade de toda a pessoa humana, em um   vigoroso empreendimento missionário que, apesar dos seus inúmeros   equívocos, teve uma inegável dimensão civilizatória. A Reforma   Protestante, em seu conjunto, tornou o mundo melhor.
Expansão  missionária que, por meio de missionários estrangeiros e  pioneiros  nacionais chegou até ao Brasil, sob fortes restrições legais e   discriminações sociais, que varou os sertões ao lombo de burro, levando   luzes onde havia escuridão da alma, e que nós hoje somente estamos aqui   na esteira do seu ministério sacrificial. E, nessa noite, é nosso  dever  expressar a nossa gratidão e honrar a sua memória.
II – Cenário Atual
O  avanço protestante foi originalmente obstaculado no Leste e no Sul  da  Europa, mas se desenvolveu no Centro e no Norte daquele continente,   inclusive como religião oficial. Essa vinculação com o Estado não foi   benéfica, e, rapidamente, deu lugar a uma imensa maioria de membros   nominais e uma minoria de comprometidos, embora tenha tido um papel de   plasmar marcas importantes da cultura e das instituições.   Posteriormente, o avanço da Teologia Liberal – universalista quanto à   salvação – acelerou o esvaziamento dos templos. Hoje, com a ideologia   Secularista e a imigração de membros de outras religiões,   particularmente do Islã, já se fala de uma Europa pós-cristã, onde, o   que é mais grave, o Cristianismo vem sendo discriminado e perseguido   pelo Estado e pela Sociedade secularizadas.
Quadro  semelhante vai se dando também no Canadá, na Austrália, na  Nova  Zelândia, e, em menor velocidade, mas não menos evidente, nos  Estados  Unidos da América. Philip Jenkins, essa sua obra agora clássica, A Próxima Cristandade,   nos fala de um deslocamento, mais uma vez, do Cristianismo, do Norte e   do Oeste para o Sul e o Leste do globo, notadamente para a África   Sub-Saariana, para a América Latina e para algumas áreas da Ásia e da   Oceania.
O primeiro foi  a sua preocupação com a  Soteriologia à custa da Eclesiologia,  resultando em uma débil doutrina  sobre a Igreja, a partir de uma  ruptura com o modelo histórico  episcopal, e a criação do modelo  presbiteriano e do modelo  congregacional. A autoridade da Bíblia foi  afirmada, mas não se elaborou  instituições sólidas, que garantissem a  manutenção desse princípio,  fortemente atacado de fora pelo  Racionalismo e de dentro do Liberalismo.
O segundo foi a distorção quanto ao princípio do “livre exame”, entendido originalmente como livre acesso, por uma visão posterior de uma “livre interpretação”,   dentro do individualismo burguês decorrente do modo de produção   capitalista e da urbanização, resultando em um caos doutrinário   interminável.
O terceiro, a partir dos Estados Unidos nos últimos dois séculos, foi o surgimento do conceito de “denominação” e o fenômeno sócio-eclesiástico do “denominacionalismo”, com uma fragmentação institucional sem fim, e a eliminação do pecado do cisma.
Adicione-se  as controvérsias polarizantes das primeiras décadas do  século passado,  outra vez tendo como epicentro os Estados Unidos, tais  como: Liberalismo vs. Fundamentalismo; Evangelho Social vs. Evangelho Individual; Evolucionismo vs. Criacionismo,   a atitude de apoio, indiferença ou oposição dos protestantes a Hitler e   ao Nazismo, ao Racismo do Sul dos Estados Unidos, ao apartheid da   África do Sul, a guerra civil de Ruanda, a um ou outro lado da   ideologias em choque na chamada “Guerra Fria”, ou às ditaduras   do Terceiro Mundo, inclusive da América Latina, além da falta de   sensibilidade cultural de empreendimentos missionários, e teremos uma   lista de aspectos negativos e danosos.
Os principais movimentos surgidos no interior do Protestantismo na primeira metade do século passado foram, sem dúvida, o Movimento Ecumênico,   com uma necessária bandeira da unidade, mas que, depois, se perderia  no  caminho, sequestrado por uma elite teologicamente liberal; e o Movimento Pentecostal,   que se, por um lado, teve um aspecto altamente positivo na atualização  e  na dinamização protestante, por outro lado foi negativamente marcado   pelo sectarismo, pela alienação política e pelo antiintelectualismo.  No  século XXI o Movimento Pentecostal tem sido igualmente afetado por  um  doloroso processo de fragmentação, menos por questões doutrinárias  do  que por conflitos de personalidades e a prática de nepotismo.
Novas correntes, como a Teologia da Batalha Espiritual e a Teologia da Prosperidade apenas concorreram para esgarçar o já débil tecido unificador da comunidade protestante.
O  velho Liberalismo Moderno Racionalista tem dado lugar, mais   recentemente, ao Liberalismo Pós-Moderno Revisionista, no lugar da   verdade pela razão, múltiplas verdades ou nenhuma verdade, o que incluiu   um relativismo moral. Em várias tendências do protestantismo atual o   passado é atacado e negado em seu valor, inclusive o conteúdo   doutrinário, e tanto os racionalistas liberais, quanto conservadores   valorizadores das revelações privadas causam imenso dano ao princípio   reformado da Sola Scriptura.
Sem  dúvida que a expressão mais dinâmica do Protestantismo, nos  últimos  dois séculos, tem sido o Evangelicalismo, com sua ênfase na  Bíblia, na  cruz, na conversão, na santificação e nas missões. Mas, como  se pode  claramente perceber no recente Congresso Lausanne III, na cidade  do  Cabo, África do Sul, a Igreja está se espalhando rapidamente por  todo o  mundo, e lideranças nacionais estão sendo treinadas, mas o  controle  financeiro, político e ideológico dessa corrente majoritária  ainda está  fortemente nas mãos das organizações sediadas nos espaço   euro-ocidental e na cultura anglo-saxã.
Último em citação, mas não em importância, tem sido o avassalador fenômeno do chamado neo-pentecostalismo,   também conhecido como iso ou pseudo-pentecostalismo, como seitas   para-protestantes, pretendendo fazer parte dessa expressão do   Cristianismo, mas sem com ele manter vínculos de qualquer natureza, seja   histórico, seja teológico, seja doutrinário, trazendo danos à   identidade e à imagem do Protestantismo.
Algo  que deve ser ressaltado é que o Protestantismo Brasileiro, pela  maior  parte da sua história, conseguiu se manter ao largo de alguns  fenômenos  que atingiam negativamente os seus irmãos de outros  continentes,  chegando inclusive a ensaiar um nativismo e uma  inculturação, uma  caminhada autóctone, que hoje são apenas “gratas memórias”,   porque também fomos atingidos pela fragmentação institucional e   doutrinária, pela importação acrítica de ideias e métodos oriundos do   centro do poder mundial, pela desvalorização e desconhecimento do   passado ou das expressões não euro-ocidentais do Cristianismo, pela   falta de ética e pelo coronelismo do poder pessoal de “donos”
de igrejas e denominações, com seus caudilhos e sua fogueira de vaidade..Uma  das principais fontes de enfraquecimento da teologia reformada no   protestantismo brasileiro se deu na área do louvor, do cântico, porque a   Igreja crê no que ela canta, e canta o que ela crê. Devemos apoiar a   composição de novos hinos, especialmente com ritmos nacionais, mas, ao   abandonarmos os velhos hinários, abandonamos a riqueza e a profundidade   da teologia reformada neles contida. A Igreja deixou de cantar a   teologia reformada, para ir deixando a própria teologia. O que se canta   hoje são genéricas odes à Divindade e a Paz Interior, que pode ser   adotada por qualquer monoteísta, e quase nunca tem algo especificamente   protestante ou evangélico.
Enfim,  o Protestantismo no Brasil é uma força dinâmica, ainda em  crescimento  quantitativo, mas com sérios problemas originais ou  importados, pela  superficialidade, pela ausência de um projeto  histórico, o que faz com  que, apesar do aumento de igrejas e de membros,  e de vidas individuais  beneficiadas, pouco ou quase nada tem  representado em impacto  sócio-político-econômico-cultural e na redução  dos problemas nacionais,  seja a desigualdade social, seja a  desonestidade política, seja a  violência social.
Tida como uma “igreja adolescente”, ou como “um gigante de pés de barro”,   temos o que celebrar; temos potenciais, mas temos muito com o que nos   preocupar e, mantido o quadro atual, fica cada vez mais difícil se ser   otimista quanto ao futuro. Temos um Protestantismo Brasileiro ou temos “protestantismos brasileiros”?   Ou somos apenas um conjunto de indivíduos morenos que professam uma   religião estrangeira ou estrangeirizante, incapaz de se enraizar e de   amar e santificar a brasilidade, de pensar como nacionais? Por outro   lado, uma pergunta que não cessa de nos inquietar: 
E o que resta do  legado da Reforma entre nós?
O  cenário que se desenhava na primeira metade do século passado, com  um  número limitado de denominações históricas, de imigração ou de  missão, e  de denominações pentecostais sérias e éticas, aglutinadas em  torno da  Confederação Evangélica (1934-1964), em clima de respeito  mútuo, e de  mais convergências do que divergências, com todos se  considerando parte  de uma mesma comunidade, portadora de uma mesma  herança, partilhando  dos mesmos ideais, lamentavelmente se foi, e não  parece possível de ser  retornado, ao menos em um horizonte previsível.
O  cenário que se desenhava por mais de um século, ainda presente na   segunda metade do século passado, de um Protestantismo que tinha o   Evangelicalismo como corrente hegemônica, em algo que parecia sólido e   disseminado, está se esvaindo muito rapidamente nas últimas décadas,   minado pelo Fundamentalismo, pelo Liberalismo e pelo   Pseudo-Pentecostalismo. Ironicamente, quanto mais “evangélicos” o IBGE atesta em cada Censo, menos evangélicos esses “evangélicos” são…
O cenário que gerou o nacionalismo da Igreja Presbiteriana Independente ou do “Movimento Radical Batista”,   os setores e departamentos da Confederação Evangélica, a participação   brasileira no Congresso do Panamá (1916), nas CELAs e nos CLADEs, e a   inquietação de jovens e de intelectuais na construção de um   Evangelicalismo Latino, seja na Aliança Bíblica Universitária (ABU),   seja na VINDE, seja na Fraternidade Teológica Latinoamericana (FTL),   seja nos Congressos Brasileiros e Nordestinos de Evangelização, hoje   pouco mais é do que memoráveis páginas da nossa História, talvez peças   de um museu de sonhos, afogados todos na importação de textos,   pensadores, preletores e métodos dos centros do poder mundial,   reestrangeirizados, com as “fábricas” substituídas por lojas de brinquedos não “Made in China”, mas “Made in USA” ou “Made in UK”…
Em  uma época em que a globalização é apenas um sofisma para o   neocolonialismo, somos, provavelmente, os mais colonizados de todos os   brasileiros.
A Bíblia, cada vez mais vendida, em um sem número de traduções e de comentários domesticadores para todos os gostos, é cada vez menos lida e menos conhecida.
A  História Geral e Nacional da Igreja é algo sobre o que não se tem   interesse ou se tem um escasso conhecimento. E como teremos futuro, se   não temos passado? E como iremos atualizar o que desconhecemos: a vida e   a obra dos Reformadores, as Confissões de Fé, a Teologia, os   Movimentos, enfim, o conteúdo mesmo da Reforma!
Antigamente, ou tínhamos membros comprometidos ou os chamados “desviados”. Hoje há o “crente de IBGE”, o “descendente de crente”, o “crente nominal”, o “membro de frequência ocasional”, “de vez em quando”, “quando me der na telha”, “bissextos”, os “buscadores de bênçãos”, os eternos migrantes denominacionais, no modelo “religião self-service”,   onde se põe de tudo no prato, que se projeta em novas manifestações   institucionais, como Assembleianos Calvinistas da Teologia da   Prosperidade ou Batistas Renovados do Sétimo Dia, com as nomenclaturas   as mais exóticas e as mais patológicas…
Se o poeta já dizia que “navegar é preciso”,  não teríamos  imagem bíblica mais adequada para o protestantismo  brasileiro do que a  Arca de Noé, na diversidade e algazarra dos bichos  de todos os matizes.
Uma  nota de tristeza e de lamento se dirige a uma expressiva fatia da   nossa liderança, que foi evangélica no passado, mas que hoje,   influenciada por outras correntes, abjura do seu passado, ridiculariza   suas antigas convicções e confunde as novas gerações, na sua busca   necessária de modelos e de heróis. A dubiedade de tantos diante de temas   como o aborto e a agenda gay evidenciam que o Evangelicalismo   brasileiro é menos sólido do que pensávamos ou desejávamos que fosse.
Para  um futuro próximo não vislumbro grandes e radicais mudanças no   presente quadro. Continuaremos a crescer quantitativamente, teremos uma   mobilidade social com a nossa expressiva presença na chamada “nova classe média”,   moralmente mais conservadora, e que os políticos já estão descobrindo,   mesmo fragmentados e divergentes; vamos sendo empurrados pela História   como atores sociais significativos, e não teremos uma face, mas várias   faces, podendo a nascente Aliança Evangélica aglutinar setores éticos  em  torno da Teologia da Missão Integral da Igreja e de um  Evangelicalismo  teologicamente conservador e sócio-economicamente  progressista. A  criação de um bloco mais maduro passa pela consolidação  de algo que já  vem se dando há algum tempo: a aproximação entre os  históricos que  admitem a contemporaneidade dos dons espirituais e  admiram o dinamismo  dos pentecostais, e os pentecostais que valorizam o  legado e o  pensamento teológico dos históricos.
Na  profusão de denominações, subdenominações, ministérios,  jurisdições,  comunidades, missões, há o desafio da convivência  respeitosa, da busca  de um mínimo de ética como testemunho e, com maior  esforço, o  estabelecimento de pontes de diálogos e de ações conjuntas,  onde tanto a  Aliança Evangélica, a Sociedade Bíblica e as Ordens e  Conselhos de  Pastores poderiam jogar um importante papel.
A busca de um diploma reconhecido pelo MEC, antes que o preparo de obreiros tende a fortalecer os cursos de Ciência da Religião à custa dos Cursos de Teologia e da própria produção teológica e da prática pastoral.
A  reorganização da Igreja Romana em torno de um núcleo de seguidores  mais  comprometidos, o espaço dos cultos afro-ameríndios nas academias e  na  mídia, a indiferença religiosa das elites e o secularismo do Estado  são  desafios muito fortes, e que, muito provavelmente, forçarão um   despertar, ao menos por espírito de sobrevivência.
Não  precisamos de uma Nova Reforma, nem de novos Reformadores, mas de  uma  redescoberta no século XXI das mesmas verdades que foram  redescobertas  no século XVI, e de líderes que tenham a coragem de  reafirmá-las dentro  do novo contexto. Como já tenho dito, o futuro está  no passado que  permite construir o presente.
Creio,  firmemente, que o Evangelicalismo representa o somatório de  toda a  herança reformada e é a sua melhor manifestação. Na diversidade  de  teologias no mercado, nos cabe lutar pela hegemonia do  Evangelicalismo,  como princípio e como núcleo condutor de uma reformação  das igrejas  descendentes da Reforma.
Humanamente, o quadro poderia nos levar a cair no pessimismo, já que o otimismo seria irrealista e inconsequente. Mas, a nossa crença na Providência Divina, no Senhorio de Deus sobre a História, e, em particular, sobre a Sua Igreja, nos permite um realismo otimista, passos de fé, que, em muitos momentos, são “saltos no escuro”, mas, assistidos pelo Espírito Santo, nutridos pela Palavra e pelos Sacramentos, nos resta, em obediência, avançar, certos de que Ele faz nova todas as coisas, pois, o nosso Deus é um Castelo Forte, e, em se tratando da Igreja de Jesus Cristo, “Ninguém detém. É obra santa!”.
Niterói (RJ), 28 de maio de 2011,
Anno Domini.
FONTE: Do site de Ed René Kivitz
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