Paulo Brabo
Só os grandes articuladores da fé, que vivem e pensam em esferas
distantes da multidão, é que falam da sua religião em termos profundos e
categorias teológicas. Para uma pessoa normal, ou para alguém que
observa de fora, uma religião é mais claramente definida pelas suas
proibições.
O cidadão comum, muito sensatamente, prefere não ter de sentir-se à vontade entre termos como atonement, parousia, kenosis, koinonia e kairos.
O cristão médio vive muito bem sem conhecer as quatro teorias da
redenção, sem ter lido a autobiografia de Agostinho, sem pausar diante
das agonias de Kierkegaard e sem dobrar-se com as angústias de
Bonhoeffer. Ele intui que é possível aproximar-se de Jesus sem saber
exatamente o que é graça irresistível, pecado original, amilenismo,
soteriologia, hermenêutica, exegese, escatologia realizada, depravação
total, arminianismo, imanência, universalismo, teísmo aberto ou
monergismo. Muitos cristãos tarimbados sentem-se pouco à vontade para
manusear sem proteção até mesmo conceitos que são mencionados pelo nome
na Bíblia, coisas como santificação, graça, justificação, eleição e
arrependimento. Até mesmo, olha, fé.
Em contraste com isso, os mais despreparados dentre nós sentem-se em
geral prontos para elencar as interdições que envolve a nossa fé
particular – ou, no mínimo, para zelar nominalmente pela aplicação
delas. De longe, “minha religião não permite” é a profissão de fé mais
comumente proferida da Terra.
É desse modo, elencando proibições, que na vida real falamos aos
outros da nossa religião e inquirimos os outros a respeito da deles. É
falando de proibições que orientamos ou corrigimos o caminho dos que se
agregam ao círculo da nossa crença.
Há coisa de cinquenta anos as facções evangélicas e protestantes do
Brasil cultivavam uma série de interdições em comum, a maioria das quais
foram abolidas nesse intervalo, embora continuem a vigorar para um
grupo ou outro. Crente não podia não podia beber, não podia ir ao
cinema, não podia jogar futebol; não podia ouvir música do mundo, não
podia entrar em boate, não podia fumar; não podia jogar, não podia fazer
apostas e não podia dizer palavrão; se fosse mulher, não podia usar
calça comprida, não podia usar maquiagem, não podia cortar o cabelo.
Corta para 2011: não só caíram todas essas proibições (ou a sua
maioria), como a cultura e a tecnologia avançaram rápido demais para que
as assembleias pudessem legislar com adequada austeridade proibições
novas. Tarde demais para lembrar que crente não pode usar telefone
celular, não pode ter conta no twitter e não pode ler o Paulo Brabo.
Isso não quer dizer que os cristãos tenham deixado de construir sua
identidade entrincheirando-se atrás de suas mais sagradas proibições.
Permanecemos, como sempre, particularmente interessados nas
transgressões que dizem respeito ao corpo: da nossa pauta eterna aparentemente nada tem poder para riscar a contracepção, as relações homossexuais e o sexo não apaziguado pelo casamento.
Tanto a teologia quanto as proibições acabam sempre, portanto,
encontrando o seu público. Para os teólogos, a essência da fé está nas
filigranas e coisas profundas que a massa não tem como entender; para a
massa dos fiéis, a essência da fé está nas proibições muito práticas que
lhes fornecem por um lado uma identidade e por outro lhes garantem uma
recompensa.
Uma das muitas coisas singulares a respeito de Jesus de Nazaré é que
ele evitou por completo tanto as armadilhas teologantes dos letrados e
eruditos quanto a religiosidade rasa, de proibição e recompensa, das
massas.
Jesus não ignorava, naturalmente, que as duas abordagens tem muita
coisa em comum. Em grande parte, a lista de proibições adotada pelos
crentes é composta ou esboçada pelos religiosos letrados que residem
acima deles na pirâmide socioeconômica. “Se não são os sofisticados o
bastante para entender as minúcias da teologia em que se fundamentam,”
raciocinam os líderes religiosos com relação ao seu rebanho, “que pelo
menos não caiam naquelas transgressões mais severas. Façamos uma lista”.
Postando-se muito acima dessas mesquinharias, Jesus recusava-se, por
um lado, a gastar um instante que fosse do seu tempo expondo ou
discutindo teologia. Era contando histórias que ele desfiava indicações
sobre a natureza e os desafios do Reino. Era no calor sem sofisticação
de estradas, de refeições, de curas e de abraços – no calor da vida real
– que ele mostrava como o Reino se deveria viver.
Por outro lado, ele recusava-se de modo consistente a fornecer ao seu
público o conforto almejado das listas de proibições. Jesus não só
negava-se a falar da vida abundante em termos de obediência a
interdições, como repelia com exuberância as tentativas que as pessoas
por vezes faziam de, às custas dele, reduzir a ética a uma resposta “sim
ou não” para um problema complexo.
Naquela época não tinha qualquer penetração cultural a noção que
todos conhecemos hoje, de que as motivações mais mesquinhas para se agir
de determinada forma são o medo da punição e o desejo da recompensa.
Jesus, no entanto, agia e ensinava como se fosse coisa muito evidente
que uma ética de conduta regida por proibições é limitada e
infantilizante. Muito mais ambicioso, o rabi de Nazaré sonhava com um
mundo de autonomia individual e de decisões responsáveis: “por que vocês não decidem por si mesmos o que é certo?” (Lucas 12:57).
Ao mesmo tempo, Jesus desafiava constantemente a noção – pelo menos
tão enraizada nos seus dias quanto nos nossos – de que simplesmente
abster-se de descumprir os mandamentos era coisa capaz de garantir
alguma recompensa ou de habilitar o adorador a exigi-la de Deus. Não
contente em negar o conforto das listas de regras e proibições, o Filho
do Homem insistia que na perspectiva divina nenhuma obediência tem
recompensa ou a merece.
Na verdade, Jesus sugeriu mais de uma vez que a sensação de
superioridade moral que acompanha uma vida de obediência estrita aos
mandamentos é, em si mesma, a única recompensa que um religioso/carola
deve esperar receber pela sua conduta.
Quem rege sua postura pela obediência aos mandamentos, insistia
Jesus, não faz nada de mais e nada deve esperar em troca. A imitação de
Deus requer uma bondade assertiva e uma generosidade vivida, não uma
vida de recuos, desvios e melindres. Como ilustração espetacular desse
modo de ver as coisas, em seu último discurso no evangelho de Mateus o
Filho do Homem ousa condenar ao inferno não os pecadores que
rebaixaram-se a fazer o mal, mas os religiosos que deixaram de fazer o
bem.
Essa visão outorgava ao homem uma liberdade que tinha tanto de
terrível quanto de sublime. O apóstolo Paulo maravilhou-se diante dela
mais de uma vez. Por vezes usamos o seu “mas nem todas me convém” a fim
de anular por completo o seu “todas as coisas me são lícitas”, porém
isso é não fazer justiça à vertigem que ele detectou. Para recapturá-la
seria preciso reescrever o seu hino como: “todas as coisas me são
lícitas, e terei a hombridade de assumir responsabilidade por todas que
eu fizer ou deixar de fazer”.
Um Deus que sonhava para os seres humanos uma vida de plena
maturidade, sem recalques mas sem descontos, mostrou-se incrível e
exigente demais para ganhar verdadeira popularidade.
Ao sugerir que seu Pai não recompensava a obediência, mas esperava
uma gentileza assertiva mais do que uma obediência neurótica a
regulamentos, Jesus requereu uma profunda e intransigente
ressignificação da imagem que os homens faziam (e ainda tendem a fazer) de Deus. Não é de se admirar que poucas gerações de convertidos depois os cristãos já tivessem revertido à imagem tradicional da divindade, aquele que aceita os bons e rejeita os desobedientes.
Jesus, patrono da maturidade, perguntava a seus discípulos porque
eles não discerniam por si mesmos o que era correto, e ensinava que as
prostitutas chegam ao céu antes dos religiosos. Hoje em dia as igrejas,
patrocinando a imaturidade, explicam que a Bíblia é uma norma inflexível de conduta, e ousam dizer a gente adulta, capaz de ler os evangelhos por si mesma, que criança boazinha é que vai para o céu.
fonte: A Bacia das Almas
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