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"Meus filhos terão computadores, sim, mas antes terão livros. Sem livros, sem leitura, os nossos filhos serão incapazes de escrever - inclusive a sua própria história." Bill Gates

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segunda-feira, 5 de março de 2012

Dança profética é a do Afroreggae




Sostenes Lima, no blog dele, vi no Pavablog
Há alguns anos começou no Brasil um “movimento profético”. Não sei bem de onde veio. Pra falar a verdade, não estou interessado em saber. Só estou escrevendo sobre esse tal movimento porque não aguento mais ver a palavra profético ser conspurcada pela religião. Já notaram que tudo hoje em dia é profético: da adoração à riqueza? Fiz uma pequena busca no Google e, para minha certeza, encontrei uma lista enorme de práticas religiosas e litúrgicas grosseiramente associadas à palavra que dá nome a um agente social, cuja memória exige respeito: o profeta. Vejam as pérolas que achei:
  • Adoração profética
  • Louvor profético
  • Louvorzão profético
  • Música profética
  • Dança profética
  • Culto profético
  • Bandeira profética
  • Sacerdócio profético
  • Ministração profética
  • Unção profética
  • Campanha profética
  • Transe profético
  • Mover profético
  • Êxtase profético
  • Teatro profético
  • Coral profético
  • Entrega profética
  • Oração profética
  • Jejum profético
  • Línguas proféticas
  • Batismo profético
  • Ceia profética
  • Oferta profética
  • Prosperidade profética
  • Riqueza profética
Obviamente a lista está incompleta. Não dá pra esgotá-la. Esse pessoal da religião é muito criativo e muito esperto.

Esse movimento todo em torno da palavra profético, infelizmente, não tem nada a ver com o resgate de um movimento social que surgiu na sociedade judaica monarquista há aproximadamente 2800 anos atrás. O uso abundante da palavra profético nos nossos dias não passa de uma grande jogada de marketing.
“Novos negócios precisam de novas palavras. E quando o negócio é velho, mais ainda!”, diz pragmaticamente a publicidade.  Não há como continuar explorando indefinidamente um negócio sem renovar sua cara. É por isso que surgiram a “Nova Skin”, o “Novo Civic”, o “New Fiesta” etc. A publicidade tem como objetivo nos convencer de que tudo é novo. Porque, se é novo, precisamos comprar. As coisas que temos são velhas; já não servem mais. Somos enredados pela a ilusão de que é possível refrear o envelhecimento comprando coisas novas.
O que ninguém diz é que o novo é apenas uma maquiagem verbal. A retórica publicitária faz com que coisas velhas sejam instantaneamente transformadas em novas, bastando renovar palavras ou inventar palavras novas. Sem os dotes retóricos, o que vemos é uma realidade bem diferente: tudo envelhece, até mesmo a palavra novo. Fico pensando sobre qual será o recurso publicitário que vai ser usado para vender o “Novo Civic” depois que o novo que há em seu nome envelhecer? Será que haverá um “Novo Novo Civic”? Bom, deixemos isso de lado e concentremos no que é da conta deste artigo.
Resumindo toda essa divagação sobre o discurso publicitário em uma única frase, teremos: não há como fazer um produto explodir no mercado sem colar nele uma buzzword. É preciso associar ao nome do produto uma palavra que vai dar cara ao negócio, que vai vendê-lo, que vai fixá-lo na mente do consumidor, que vai mobilizar revendedores e vendedores, que vai fortalecer as franquias, que vai ser inserida na missão e visão de empresas associadas etc.
Pois é, o mercado gospel, sabendo disso, fez um investimento de peso na palavra profético. E logo percebeu que essa seria uma jogada de muito sucesso. O pessoal do mercado religioso evangélico notou que colar em seus produtos o adjetivo profético agrada o consumidor. Daí a invenção de coisas como “adoração profética”, “ministração profética”, “dança profética”, “louvor profético” e até “riqueza profética”. A palavra tem alcançado uma circulação quase viral no meio gospel brasileiro.
Estudos em análise do discurso nos mostram que a publicidade consegue êxito na tarefa de projetar comercialmente uma palavra através de três estratégias semântico-discursivas. A primeira consiste em inventar tanto a palavra (matéria sonora e gráfica) como o significado desejado. Lança-se então uma nova palavra no mercado linguístico. Podemos dizer, adotando os termos de Saussure, que são criados tanto o significante quanto o significado. A segunda consiste em inventar significados novos para uma palavra velha, mas sem desconstruir ou apagar os significados antigos. Constroem-se, assim, metáforas com a palavra.
A terceira, muito mais audaciosa, consiste em esvaziar todo o significado da palavra, deixando-a completamente líquida e plástica, sob o ponto de vista semântico, para que possa se adaptar a qualquer contexto, tanto textual e quanto discursivo. Essa terceira estratégia é mais ousada porque é muito difícil destituir os significados fundantes de uma palavra; é muito difícil fazer o interlocutor bloquear o histórico semântico de qualquer palavra que seja. Isso é quase uma proeza. Só mesmo a publicidade para conseguir tamanha façanha.
Pois foi essa última estratégia que o mercado gospel usou com a palavra profético. Arrancou dela sua história semântica, deixando-a esvaziada de todos os traços que a inserem no campo da militância social e política. O significado fundante desse vocábulo remete a uma prática sociopolítica desenvolvida em Israel, na época da monarquia.
O profeta era um agente social que denunciava os desmandos praticados pelos poderosos do meio político, jurídico e religioso. Frequentemente reis, juízes e sacerdotes, empunhados da força que o poder lhes garantia, se embrenhavam na corrupção, explorando e oprimindo o povo. Quando a coisa se tornava insuportável, irrompia o profeta com a boca no trombone. Ele denunciava tudo e todos; desmascarava a corrupção e reclamava o direito dos oprimidos.
O discurso profético era um manifesto recoberto de denúncia e exigência de libertação. Não é de surpreender que os profetas fossem alvo de terríveis perseguições.  Naquela época, tudo que era profético era frontalmente oposto à coroa, ao judiciário e à religião. Para ser profeta era necessário haver disposição e coragem para desconstruir o discurso dessas três esferas públicas.
No profetismo de hoje, tudo essa memória sociopolítica, construída um torno da palavra profeta, é esvaziada. Para o mercado gospel, ser profético não significa nada. Não há intensão de manter ou agregar significado algum à palavra profético em si mesmaO que se quer é atribuir ao termo um valor comercial, tornando-o adaptável a qual quer produto religioso, especialmente aqueles já envelhecidos e com pouco apelo de consumo.
Dizer que uma música é profética constitui uma estratégia muito eficiente para convencer o consumidor de que está diante de um produto religioso novíssimo, do qual tem extrema necessidade.Portanto, todo esse frisson em torno da palavra profético nada mais é do que uma jogada retórico-publicitária que visa impulsionar o consumo religioso. Colocar o termo profético ao lado de produtos religiosos como adoração, culto, música, dança, oração, campanha, unção etc. dá-lhes uma roupagem de novo, criando um apelo de consumo quase irresistível.
Não digo que não haja dança profética. Mas se existir não tem nada a ver com essas coreografias de mau gosto que a gente tanto vê nas igrejas evangélicas por aí. Dança profética, para ser profética de verdade, tem de ser uma prática sociopolítica. Nesse sentido, eu estou muito mais disposto a encarar a apresentação de um grupo de jovens ligado ao Afroreggae como um evento de dança profética (em virtude do projeto de transformação sociopolítica aí incorporado), do que a apresentação de um grupo de dança evangélico, que só pensa em liturgia e nada faz por mudança e transformação social.
foto: FlipZona

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