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segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Carlos Alberto Bezerra Jr: “Não me alinho a bancadas evangélicas”

cabjrCarlos Fernandes, na Cristianismo Hoje
Em setembro, um deputado brasileiro foi destaque na Organização das Nações Unidas, e por um motivo que nada tem a ver com corrupção ou envolvimento em irregularidades – tipo de atitudes normalmente associadas aos políticos no Brasil. O deputado estadual Carlos Alberto Bezerra Jr, do PSDB paulista, falou na reunião do Alto Comissariado dos Diretos Humanos da ONU, realizada em Genebra (Suíça), sobre um projeto de sua autoria que está dando o que falar. Aprovado na forma da Lei nº 14.946, o instrumento prevê a cassação do registro no Imposto Sobre Circulação de Mercadorias e Serviços, o ICMS, de toda empresa que se utilizar, ainda que indiretamente, de mão de obra submetida a regimes de trabalho que se assemelhem à escravidão. Na prática, a lei inviabiliza o funcionamento de grupos empresariais que praticam a exploração ilegal de trabalhadores. Embora a escravidão tenha sido oficialmente abolida no país há 125 anos, há muitas pessoas escravizadas ou semi-escravizadas no país, e não apenas nas longínquas zonas rurais. Só em São Paulo, o mais rico e desenvolvido Estado do país, 40 mil trabalhadores nessa condição foram resgatados na última década – tanto brasileiros como imigrantes ilegais oriundos de nações sul-americanas.
Vereador por dois mandatos na capital paulista, Bezerra foi para a Assembleia Legislativa de São Paulo em 2011. Relativamente curta, a carreira política tem se consolidado com ações a favor da saúde e dos direitos humanos, com uma boa avaliação de seus mandatos. Médico e pastor da Comunidade da Graça, em São Paulo, Bezerra sabe, no entanto, que a imagem do político, inclusive o evangélico, está desgastada no país. “Minha fé não é meu palanque; por isso, as diversas matérias que deram destaque à nova lei não entram nesse assunto”, diz. Dizendo que nunca se alinhou às chamadas bancadas evangélicas – “Esses grupos nunca se notabilizaram por suas boas práticas ou significativas contribuições para o país”, explica –,o deputado argumenta que falta à Igreja uma atuação cristã e política que seja profética e transformadora. “É por isso que a agenda gay acaba pautando a agenda evangélica no país.”
CRISTIANISMO HOJE – Cerca de 40 mil trabalhadores foram resgatados de condições de escravidão ou semi-escravidão nos últimos dez anos, só no Estado de São Paulo. Qual é o real tamanho do problema, em escala nacional?
CARLOS ALBERTO BEZERRA JR – O problema é gravíssimo. Trabalho escravo não é coisa do passado. Existe, acontece e está perto de cada um de nós. No mundo todo, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) estima que haja cerca de 27 milhões de escravos – e não apenas nas áreas rurais. Esse problema acontece também, e muito, nas zonas urbanas. No Estado de São Paulo, o trabalho escravo concentra-se especialmente nos setores da construção civil e da indústria têxtil. Hoje, a capital do Estado mais rico do país abriga mais de 10 mil oficinas de costura clandestinas, repletas de trabalhadores em condições de escravidão.
Quando o senhor começou a se envolver com isso?
Comecei a lutar contra essa violência absurda na metade de 2011, quando estouraram as denúncias sobre escravidão na produção das roupas da grife Zara. Não tinha ideia de que aquele caso era uma gota num oceano de crimes dessa natureza. De lá pra cá, foram inúmeras batalhas, com novas denúncias contra grandes empresas e diversos novos casos de escravidão contemporânea. Passei a convocar os principais envolvidos em casos do tipo para dar explicações na Comissão Estadual de Direitos Humanos, da qual sou vice-presidente. Das longas sessões – das quais saíamos quase sempre mais revoltados do que havíamos entrado –, surgiu a ideia de criar um projeto de lei que invertesse a engrenagem que move o trabalho escravo de hoje. A lógica da proposta que nasceu dessa experiência é cortante: se o trabalho escravo não tem outro objetivo que não o lucro, então, para combatê-lo é preciso gerar prejuízo a quem o pratica.
Mexer com esses grupos não o assusta?
Desde quando apresentei a medida até sua transformação em lei, não houve uma calmaria sequer. Foram lutas e mais lutas. Cheguei ao ponto de ter minha família ameaçada por uma grande corporação prestes a perder as receitas que conseguia às custas do sangue de imigrantes andinos e brasileiros. Felizmente, demos o primeiro passo para que essa violência absurda, essa afronta o Criador, seja interrompida aqui em São Paulo.
No Brasil, empresários e poderosos, de um modo geral, costumam se blindar através do próprio poder econômico e de articulações corruptas com gestores públicos, legisladores e magistrados. Quais os instrumentos que poderão ser adotados para evitar que, com manobras jurídicas, os acusados consigam se safar?
A gente não aguenta mais impunidade. As manifestações que ganharam as ruas recentemente foram também motivadas por esse sentimento. Cansamos de ver leis serem aplicadas só para quem pode menos. É por isso que a nova lei paulista contra o trabalho escravo é taxativa. Sua lógica é semelhante a da Lei da Ficha Limpa. Ou seja, sua aplicação é ágil e fácil de entender – basta uma condenação por órgão colegiado, ou seja, não há necessidade do trânsito em julgado.
O senhor acredita que, de alguma forma, a visibilidade de seu projeto tenha contribuído para uma visão mais justa da representação parlamentar evangélica, tão desgastada no país?
Minha fé não é meu palanque; por isso, as diversas matérias que deram destaque à nova lei não entram nesse assunto. Ser um político evangélico não significa sair por aí com bravatas, demagogia e proselitismo disfarçado de defesa da família. Isso, para mim, é oportunismo eleitoreiro. Rejeito o modelo de representação evangélica na política que se limita às questões de usos e costumes. O moralismo populista, na maioria das vezes, funciona como cortina de fumaça para esconder mandatos irrelevantes. Defendo que o cristão na política expresse sua fé por meio da postura ética, de uma agenda que priorize a defesa dos interesses e direitos dos mais pobres, com leis e projetos que combatam a injustiça e ponham limite à maldade, e tendo o respeito pela sacralidade da vida humana como valor.
E o senhor está esperançoso por efetivas mudanças no Brasil ou essa sucessão de protestos pelo país corre o risco de ser apenas um repique de indignação?
Estou muito animado com os protestos que vimos. Eu mesmo fui às ruas aqui em São Paulo para protestar contra uma Proposta de Emenda Constitucional estadual que queria impedir o Ministério Público de investigar políticos. Trabalhei também na Assembleia Legislativa contra esse projeto da impunidade. Junto com outros parlamentares, impedimos que fosse aprovado. Tenho esperanças de que as manifestações que marcaram especialmente o fim do primeiro semestre deste ano não acabem. O povo é um agente político fundamental – e os governantes pareciam ter se esquecido disso. Sou apaixonado por esse ativismo social e acredito muito nisso como motor de mudanças estruturais importantes. No que depender de mim, o “vem pra rua” vai continuar. Porém, penso que a maior prova do ativismo seja na urna. É lá na urna que serão guilhotinadas velhas raposas que não nos representam.
Muitos evangélicos são eleitos com bandeiras meramente corporativas, visando a agradar ao próprio segmento e até mesmo agindo como despachantes de igrejas. Qual a sua avaliação sobre a atuação dos crentes na política brasileira?
Nunca me alinhei a bancadas evangélicas, nem quando fui vereador, nem agora, como deputado. Isso porque esses grupos nunca se notabilizaram por suas boas práticas ou significativas contribuições para o país. Ao contrário; no mais das vezes, essas frentes politiqueiras se notabilizaram por escândalos e mais escândalos, e por transformar Deus em cabo eleitoral. Tudo isso faz com que a opinião pública se torne cada vez mais refratária à figura do evangélico na política, e contribui para reforçar uma visão caricata e estereotipada desse tipo de parlamentar – que, cá entre nós, não é exatamente injusta, a julgar pelo tanto de absurdos cometidos em nome de Deus em Casas legislativas de todo o país. Por tudo isso, desconfio daqueles que se autoproclamam defensores da Igreja. A Igreja já tem em Jesus seu único e suficiente defensor. Esse modelo que leva às cadeiras dos Legislativos de todo o país gente que não tem outro interesse que não o de proteger ou conceder privilégios à denominação que representa é uma clara privatização religiosa do espaço público. Vou acreditar em bancada evangélica quando significar a união de parlamentares em prol da agenda do Reino. Sou seguidor de Jesus e busco reafirmar minha fé em tudo o quanto faço no Parlamento paulista; porém, jamais me afirmarei representante desse ou daquele grupo.
Em 2002, o então candidato à Presidência Anthony Garotinho, com um discurso evangélico, obteve um surpreendente terceiro lugar na disputa, com quase 18% dos votos. Já em 2010, outra candidata evangélica, Marina Silva, conquistou votação tão expressiva que provocou um inesperado segundo turno. O que fazer com esse imenso patrimônio político?
Essa é mesmo a pergunta a ser feita. Nossas igrejas estão cheias; temos espaço na mídia, na política e no empresariado; há evangélicos artistas, os esportistas e outras personalidades. Porém, que diferença temos feito em cada uma dessas estruturas e quais resultado temos obtido a partir da soma de nossas esforços em todas elas juntas? Não se trata de lutar por um presidente evangélico, mas de ter uma atuação como Igreja, sensível ao choro dos que sofrem, pronta a libertar os oprimidos, tanto espiritual como socialmente. O Evangelho genuíno, quando experimentado e vivido, produz mudanças que não são superficiais: são estruturais. Precisamos nos lembrar que somos seguidores de um preso político, um homem que foi perseguido e morto pelo regime de sua época justamente por tê-lo contestado, por ter proposto uma alternativa concreta a tudo aquilo. Por agora, me parece que muitos gostam mesmo é de se autoproclamar evangélicos, mas sua falta de testemunho como seguidor de Jesus fala mais alto que as maiores bravatas. Por outro lado, imagine o impacto se apenas 1/3 da comunidade evangélica adotasse um novo tipo de engajamento sócio-político, com uma outra compreensão bíblica, não restrita ao moralismo, mas equilibrada e proposta com humildade. Uma agenda cristã conduzida com honestidade e humildade poderia diminuir a violência, erradicar a pobreza e a escravidão moderna, cuidar da Criação, fortalecer as famílias. Um engajamento cristão honesto, sábio, com uma agenda biblicamente equilibrada pode transformar o quadro atual do país e confrontar as mazelas sociais e espirituais do Brasil.
Ser filho de um pastor – Carlos Alberto Bezerra, fundador e líder da Comunidade da Graça – representou muitas cobranças no sentido de que o senhor também se tornasse um pastor?
Graças a Deus, meu pai sempre permitiu que fizéssemos nossas próprias escolhas. Ele cuidou para que tivéssemos os mesmos princípios e valores, mas nunca impôs que seguíssemos o mesmo caminho que ele – por essas e outras, aliás, ele segue sendo minha principal referência. Quando terminei os estudos, fui cursar faculdade de Medicina. Formei-me médico e passei a trabalhar em pronto-socorros da periferia paulistana. Larguei meu principal emprego para iniciar uma ONG e levar atendimento médico a quem jamais poderia pagar por isso. Meu chamado vem de lá. Daquilo que vi e ouvi de quem mais precisa. Minha vocação é de serviço. A função do pastorado veio como consequência dessa vivência e das experiências dela decorrentes – foi natural.
E seu ministério interfere de alguma forma na atuação política?
Nunca usei título. Costumo dizer que sou um discípulo de Jesus disfarçado de deputado. Estou na política a serviço dele, pelo tempo de serviço que ele quiser.
Além de seu pai, o senhor tem outros modelos na política e na vida cristã?
Gosto de dizer que, quando entro no plenário, não deixo minha fé do lado de fora. Então, prefiro exemplos que unam as duas coisas, ou seja: modelos de seguidores de Jesus na política. Há vários. Mas destacaria Desmond Tutu, arcebispo anglicano, que, junto com Nelson Mandela, lutou pelo fim do regime racista do apartheid. Martin Luther King – exemplo de liderança evangélica comprometida com seu país e com seu povo – é outro, assim como Dietrich Bonhoeffer, pastor luterano que integrou a resistência alemã ao nazismo; E Willian Wilberforce, que teve coragem de lutar contra a escravidão na Inglaterra do século 18.Por aqui, há muitos outros, como, por exemplo, a Marina Silva, minha amiga pessoal. É impossível falar de minhas referências cristãs sem falar de John Stott, Robinson Cavalcanti, Ariovaldo Ramos, Brian MacLaren, Tony Campolo, René Padilla, Billy Graham, Jung Mo Sung e Ed René Kivitz, entre e tantos outros.
Nas igrejas brasileiras de perfil avivado, o sistema de sucessão é muitas vezes hereditário, com o comando passando de pai para filho ou de marido para mulher. Esse sistema não é uma distorção do princípio do chamado pessoal? Até que ponto vai a influência familiar e o puro nepotismo eclesiástico, sobretudo naquelas denominações que detêm grande patrimônio?
Não conheço proximamente as experiências desses líderes. Mas vejo muita liderança “hereditária” por aí. Tem muito absurdo sendo cometido na base da justificativa de que “Deus falou”ou “Deus revelou”. Isso, sem dúvida, é prejudicial. Acredito que ministério exija vocação, chamado do Pai para sua obra. Não é título; é função, e precisa ser exercida por quem está disposto a servir, a ser o último, a ver seu caminho de vida mudar bruscamente, segundo a vontade de Deus, e não por quem só quer poder e privilégio. Agora, por outro lado, há muitos filhos que, a exemplo de seus pais, são vocacionados, e não devem ser vistos com preconceito. A filha de René Padilla, Ruth, dá sequência ao trabalho de seu pai como secretária-geral da Fraternidade Teológica Latino-americana sem, com isso, ser venal ou carreirista – pelo contrário.
A defesa dos direitos humanos e sociais não é uma bandeira usual da Igreja Evangélica. Por que os crentes brasileiros, vivendo em uma nação de Terceiro Mundo e com imensas – e visíveis – mazelas, demonstra tamanha miopia social?
Sou parte dessa Igreja – que tem erros, com certeza. Mas que tem acertos, também. Digo isso porque os problemas da Igreja são meus também. Não me omito nem me coloco à margem. Porém, o que percebo é uma desconexão entre esses que se pretendem “líderes” da igreja – muitos dos quais ocupando espaços de mídia e de poder – e os reais problemas das pessoas e do país. Há poucos meses, quando a população estava nas ruas, pedindo por justiça, um sem-número de evangélicos lotava um evento em Brasília para tratar de temas que nada tinham a ver com o clamor das ruas [N.da Redação: essa manifestação foi promovida em defesa da liberdade religiosa, da família tradicional – em oposição à chamada militância gay – e da vida, e teve como principal organizador o pastor Silas Malafaia]. É preocupante: igreja que se isola anda na contramão da sociedade. E igreja que não se mistura fala sozinha. Ao invés de cair na graça do povo, como em Atos 2, cai em desgraça. Sonho com o dia em que a atuação evangélica na política exceda o campo moral.
A Igreja tem errado o foco ao eleger a crítica ao movimento gay como tema prioritário?
A falta de uma agenda cristã política profética e transformadora faz com que a agenda gay paute a evangélica no país. Há uma pesquisa feita pelo Instituto Barma, dos Estados Unidos, que quis saber qual característica dos cristãos norte-americanos era mais facilmente percebida pelos não-cristãos daquele país. A resposta foi quase unânime: os evangélicos são anti-gays. No Brasil, vivemos algo semelhante. Está claro contra o quê os evangélicos são. Mas quando ficará claro aquilo de que somos a favor? É evidente que, nesse debate, tenho posição clara. Não abro mão dos meus valores. Sou um seguidor de Jesus e jamais aceitarei que meus princípios sejam menosprezados ou tratados com preconceito. Cabe a nós, como evangélicos, defender, sim, aquilo em que acreditamos, ter um compromisso inegociável com os princípios bíblicos. Porém, para mim, erramos ao estabelecer essa como a única questão. E quanto aos sem-teto? E quanto aos idosos? E quanto às questões de sustentabilidade ambiental e econômica? O que temos a dizer sobre isso? Qual é a nossa contribuição nesses temas? Vejo na Bíblia uma hierarquia temática diferente daquela que observo em nossa representação pública. A Bíblia não é um livro monotemático – aliás, não se encontra meia dúzia de versículos sobre homossexualidade. Por outro lado, há mais de dois mil sobre nosso dever para com o pobre, o órfão, a viúva, o sem-teto. É um mau sinal quando andamos na contramão da Palavra, não acha?

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