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quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Não é só homofobia: 10 erros do texto ‘Parada gay, cabra e espinafre’ publicado na Veja

podebeijar


por Manu Berem, no Jezebel
Você já deve ter visto que o texto opinativo“Parada gay, cabra e espinafre”, publicado por J.R. Guzzo na Veja que foi às bancas neste fim de semana, está causando comoção nas redes sociais. Tanto no Twitter, como no Facebook e em blogs, o texto é classificado como homofóbico por se posicionar contra a luta pela causa gay. Os exemplos grosseiros utilizados para defender a postura contra o casamento gay como “Um homem também não pode se casar com uma cabra, por exemplo; pode até ter uma relação estável com ela, mas não pode se casar” geraram raiva e piadas contra a revista. Porém, o texto ainda contém outros erros tão graves quanto estes: o autor apresenta verdades sem checar as informações, baseia-se em clichês populares perigosos e estabelece uma lógica nos argumentos que é preguiçosa e conduz o pensamento do leitor para um caminho errado. 
Para começar, o emaranhado de parágrafos do texto de J.R. Guzzo tenta defender que a a luta pelos direitos homossexuais é uma guerra que está gerando mais animosidade do que efeitos positivos. Premissa que eu, particularmente, derrubo logo que ela se apresenta. Podemos concordar com Guzzo que todo movimento social corre o risco ou acaba por perder o foco em algum ponto da sua argumentação ou ações, gerando efeitos colaterais inesperados. Porém, se estes efeitos colaterais não dominam o objetivo central de um movimento, não formam algo suficiente para eliminá-lo.
O primeiro erro grave de J.R. Guzzo é dizer que o “movimento gay”, e consequentemente a “comunidade gay” e a “causa gay”, não existem, já que são compostos por indivíduos diferentes, com vontades diferentes, apenas com “suas preferências sexuais” em comum. Com isso, vemos o quanto é fácil teorizar sobre um movimento em cima de um discurso lógico quando não há nem a leve intenção de conhecer realmente a razão dele existir.
O movimento gay, assim como qualquer movimento social que luta contra qualquer coisa, existe por uma premissa básica: a sociedade é injusta com os indivíduos que o compõem. O mesmo acontece no movimento negro ou feminista, por exemplo. Estes grupos são tratados de formas diferentes pelas outras pessoas e/ou sofrem violências de diversos tipos, níveis e formas. Muito antes de se unirem para decidir o que é melhor para a classe — no texto, J.R. Guzzo coloca isso dizendo “[Os gays] Adotam posições opostas em política, religião ou questões éticas” — eles estão juntos para pedir que a sociedade respeite o que eles são.
Quando alguém não compreende isso, todo e qualquer argumento, por mais que seja bem apresentado, cai por terra. É triste e preocupante quando algo irresponsável como este é dito para um público de, no mínimo, 8 milhões de leitores.

Dez erros do texto “Parada gay, cabra e espinafre”

10 — A analogia do Projeto Apollo e da frigideira 
Erro leve, mas já que algo tão distante do assunto foi utilizado como analogia, também é passível de correção. O motivo deste erro são alguns 20 anos de diferença, como lembra Carlos Orsi. Este artigo do Chicago Tribune mostra que a NASA apenas usou o Teflon nas produção dos trajes dos astronautas que foram à Lua em 1961 por ele ser antiaderente, mas ele havia sido inventado em 1941.
9 — O kit gay é um incentivo ao “homossexualismo”
Já não era para o “kit gay”, apelido maldoso dado ao “kit antihomofobia”, uma das grandes polêmicas da campanha para prefeito em São Paulo, ter sido superado ou ao menos devidamente esclarecido?
No texto, J.R. Guzzo requenta a polêmica, simplesmente porque ela é fácil de emplacar, dizendo:
O kit gay, por exemplo, pretendia ser um convite à harmonia – mas acabou ficando com toda a cara de ser um incentivo ao homossexualismo, e só gerou reprovação.
Porém, a iniciativa de Fernando Haddad enquanto Ministro da Educação não foi para frente porque o
material estava incompleto: era necessário, além de apresentar a homossexualidade e discuti-la com as crianças, acrescentar o combate ao bullying ao material.
8 — Não há violência contra gays apenas pelo fato deles serem gays
Ao defender que não há violência contra gays, mas a sociedade como um todo está sofrendo, J.R. Guzzo combina relativização com falta de checagem de dados. Ele diz:
Pelos últimos números disponíveis, entre 250 e 300 homossexuais foram assassinados em 2010 no Brasil. Mas, num país onde se cometem 50000 homicídios por ano, parece claro que o problema não é a violência contra os gays; é a violência contra todos. Os homossexuais são vítimas de arrastões em prédios de apartamentos, sofrem sequestros-relâmpago, são assaltados nas ruas e podem ser mortos com um tiro na cabeça se fizerem o gesto errado na hora do assalto – exatamente como ocorre a cada dia com os heterossexuais; o drama real, para todos, está no fato de viverem no Brasil.
Indo atrás destes dados números utilizados no texto (“250 e 300 homossexuais foram assassinados em 2010 no Brasil”) o que encontramos são números relacionados a crimes de ódio aos gays, estritamente. Os dados são da ONG Grupo Gay Bahia (GGB), considerada uma das primeiras instituições a lutarem pelos direitos homossexuais do País e a única que se preocupa em coletar e formar um banco de dados com números de mortes de gays e travestis. (O Governo Federal não tem preocupação parecida e a GGB já o denunciou à ONU e Comissão dos Direitos Humanos da OEA por não desenvolver este trabalho).
O relatório do primeiro semestre de 2012 revelou que 165 gays haviam sido assassinados, um aumento de 28% em relação aos números do mesmo período do ano anterior. Eles se baseiam em notícias das páginas policiais dos jornais brasileiros que mostram crimes de ódio contra gays e travestis e atualmente mantém atualizado o blog Quem a Homofobia Matou Hoje. Se alguém ainda tiver a dúvida inocente de que alguém morre apenas por ser gay basta dar uma olhadinha neste wordpress sangrento.
7 — A sociedade brasileira não agride os gays, quem faz isso são os delinquëntes
E as agressões gratuitas praticadas contra gays? Não há o menor sinal de que a imensa maioria da população aprove, e muito menos cometa, esses crimes; são fruto exclusivo da ação de delinquentes, não da sociedade brasileira.
J.R. Guzzo entende como “sociedade brasileira” seus colegas de redação, vizinhos de prédio e sujeitos engravatados da padaria perto da sua casa? Nosso conceito de “sociedade”, às vezes, é bem restrito, né?
De acordo com a Secretaria Nacional de Direitos Humanos da Presidência, a maioria das agressões contra homossexuais acontece dentro de casa. Um relatório divulgado em julho deste ano analisou quase sete mil denúncias de violência motivadas por homofobia feitas em 2011, de acordo com registros da ouvidoria do SUS, da Secretaria de Políticas para Mulheres e do Conselho Nacional de Combate à Discriminação. O resultado mostrou que 62% das agressões vieram de parentes ou vizinhos e 42% aconteceram na casa das vítimas. Aonde está a “sociedade brasileira” de J.R. Guzzo, afinal?
6 — “Pregar o ódio aos gays” não é o mesmo que “dizer que não gosta de gays”
Qualquer artigo na imprensa que critique o homossexualismo é considerado “homofóbico”; insiste-se que sua publicação não deve ser protegida pela liberdade de expressão, pois “pregar o ódio é crime”. Mas se alguém diz que não gosta de gays, ou algo parecido, não está praticando crime algum – a lei, afinal, não obriga nenhum cidadão a gostar de homossexuais, ou de espinafre, ou de seja lá o que for. Na verdade, não obriga ninguém a gostar de ninguém; apenas exige que todos respeitem os direitos de todos.
Esclarecendo: no primeiro caso, você levanta a bandeira contra os gays, o que é diferente do segundo, quando você apenas é um cara sincero, ainda que babaca.
5 — Gays não podem doar sangue
O texto diz que:
Homossexuais se consideram discriminados, por exemplo, por não poder doar sangue. Mas a doação de sangue não é um direito ilimitado – também são proibidas de doar pessoas com mais de 65 anos ou que tenham uma história clínica de diabetes, hepatite ou cardiopatias.
E, com isso, diz implicitamente que um gay não pode doar sangue. Porém, pode sim, é claro. Desde 2010, o Ministério da Saúde implantou o teste NAT como uma forma de permitir que gays doassem sangue sem sofrer preconceito. O NAT é um teste de biologia molecular com objetivo de reduzir a janela imunológica — intervalo de tempo entre a infecção e a detectação por exames da produção de anticorpos pelo corpo. O teste torna a triagem das bolsas mais confiável e reduz, por exemplo, de 70 para 20 dias esse período de detecção, no caso de Hepatite C, e de 21 para 10 dias, do HIV. Por isso, se um funcionário de um hemocentro disser que um gay não pode doar sangue poderá ser denunciado.
4 – A lógica da defesa contra o casamento gay 
No sexto parágrafo do texto — e talvez o pior dele — o autor tenta defender as restrições contra o casamento gay. Além do conteúdo digno de desprezo, há o problema da lógica bem fraca. Este trecho foi analisado por Carlos Orsi com um bom exemplo. Permito-me colá-lo aqui:
Vamos imaginar, por um momento, um clone de Guzzo escrevendo numa revista da Arábia Saudita contra alguns direitos que as mulheres da monarquia árabe vêm reivindicando, como o de guiar automóveis:
Mulheres se consideram discriminadas, por exemplo, por não poder dirigir. Mas a condução de veículos automotores não é um direito ilimitado – também são proibidas de dirigir pessoas embriagadas, menores de idade, deficientes visuais e reprovados em exame psicotécnico.
Ou, voltando ao início do século 20, vejamos um precursor de Guzzo argumentando que a proibição do voto feminino não é discriminatória:
Um homem também não pode votar numa cabra, por exemplo; pode até admirar suas políticas públicas, mas não pode votar.
Levando à mesma conclusão de 2012:
Que discriminação haveria contra elas, então, se o voto tem restrições para todos?
Creio que a estrutura da falácia já ficou bem clara. Ela consiste em argumentar que, se um grupo A sofre restrição no acesso a um bem ou direito que não é estendido de forma completa, absoluta e irrestrita aos demais setores da sociedade, não há razão para que o grupo A se considere discriminado. Ou, inversamente: só é legítimo denunciar como discriminatória uma restrição imposta a um determinado grupo A se apenas este grupo, e somente ele dentro de toda a sociedade, sofrer com a restrição.
3 — Não há necessidade de transformar homofobia em crime
Pelo jeito, J.R. Guzzo nem passou perto de abrir meio link de qualquer página de qualqueeer site brasileiro ao afirmar que,
“A “criminalização da homofobia” é uma postura primitiva do ponto de vista jurídico, aleijada na lógica e impossível de ser executada na prática. Um crime, antes de mais nada, tem de ser “tipificado” – ou seja, tem de ser descrito de forma absolutamente clara. Não existe “mais ou menos” no direito penal; ou se diz precisamente o que é um crime, ou não há crime”.
O autor de “Parada gay, cabra e espinafre” nem mesmo tentou fazer uma busca no veículo para o qual escreve. Esta notícia publicada no site da própria Veja exemplifica algumas das muitas condutas que poderiam ser consideradas crime de homofobia:
Entre elas, impedir o acesso de alguém, devidamente habilitado, a uma repartição pública ou privada, assim como a promoção funcional de alguém, por exemplo, pelo fato de ser mulher, homossexual ou nordestino. O crime também estaria configurado se a discriminação ocorrer em meios de comunicação e na internet.
E ainda assim, com o projeto todo redigido e tramitando para aprovação no Congresso, J.R. Guzzo pergunta “E como descrever em lei, claramente, um sentimento como o ódio?”.
2 — Paradas gays e projetos de lei contra homofobia não são avanços da sociedade no caminho da liberdade
Pelo menos é o que J.R. Guzzo diz em seu parágrafo final:
Essas barbaridades não foram eliminadas com paradas gay ou projetos de lei contra a homofobia, e sim pelo avanço natural das sociedades no caminho da liberdade.
1 – “Perder o essencial de vista, e iludir-se com o secundário, raramente é uma boa ideia.”
A luta contra a homofobia e pelos direitos dos homossexuais não morrerem ou sofrerem preconceito por sua orientação sexual nunca será algo secundário.

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