Publicado no Estadão
Preterindo medicina ortomolecular, personal trainers, diet shakes milagrosos e dietas esdrúxulas, 13 mulheres, 1 menino e 1 menina pedem a Deus que os liberte de quilos em excesso. Não são os únicos em busca de leveza física e espiritual nessa noite. Na unidade da igreja evangélica Cristo Verdade que Liberta, de São Roque do Canaã, cidadezinha com algumas casas e poucos prédios a 110 km de Vitória, no Espírito Santo, havia também quem quisesse resolver nó no pescoço, coluna travada, mal-estar geral. Esperavam por “cirurgias divinas”, intervenções sobrenaturais que, além de aliviar suas almas, resolvessem, por assim dizer, dores da carne.
O “cirurgião” é Cesar Peixoto, pastor carioca radicado no município capixaba de Cariacica. Fazia uma “campanha sobrenatural” a convite da pastora Enedina Ribeiro, com dificuldades para atrair fiéis a sua Casa da Bênção, construída no primeiro andar da própria casa, em São Roque. Além da adoração a Deus, a ação é uma estratégia de marketing: visitas programadas em que Peixoto realiza “libertações”: do tabagismo, da obesidade e de outras doenças, prometidas por um panfleto distribuído na cidade uma semana antes – às vezes, de porta em porta. No papel, “Emagrecimento na hora” em letras garrafais e um texto dando fé sobre os milagres do pastor Peixoto. Ao pé do anúncio, uma parte destacável em que o fiel escreve o nome e entrega aos realizadores do culto. É assim que se tem o controle de quem e quantos são os novatos.
Naquele domingo, quando Enedina terminou o louvor, Peixoto se apresentou, anunciando os milagres do dia, entre eles a “lipoaspiração divina”. Explicou que o primeiro exemplo de um procedimento como esse se encontrava já em Gênesis: Deus, quando arrancou a costela de Adão para criar Eva, fizera a primeira operação espiritual. A partir de então, mantendo suspense hitchcockiano, o pastor lançaria pequenos vislumbres do que aconteceria logo mais, contando histórias e pedindo testemunhos de fiéis que, da noite para o dia, tiveram suas medidas reduzidas.
Após uma fala sobre casamento, incluindo a promoção de um CD (de R$ 15 por R$ 10) sobre sexualidade no matrimônio, com orações de quebra da “maldição sentimental” que acomete a vida conjugal de tantos casais, Peixoto dá início aos procedimentos. Convida os presentes à sala vazada em que ministra e os dispõe em três fileiras voltadas para ele. De pé, os fiéis fecham os olhos enquanto Cesar invoca os poderes de Deus e seus auxiliares. “Quem vai te operar é o Espírito Santo”, grita o pastor. “Preciso de anjos para realizar a lipo espiritual. Cura a hipófise, o hipotireoidismo, os hormônios desequilibrados, quebra a maldição genética que faz essas pessoas gordas, meu Deus! Emagrece! Emagrece!”.
Peixoto então assopra, expirando sobre as filas à sua frente. “Recebe o sono profundo!”, brada. A princípio, todos permanecem de pé. Só quando ele passa de pessoa em pessoa, entoando palavras baixinho, com as cabeças dos “pacientes” seguras entre suas mãos, é que nove fiéis desabam, amparados por dois auxiliares que se antecipavam às pernas bambas. Quando uma das moças torce a cabeça para trás, pescoço alongado e coluna arqueada, Peixoto explica que ela dormia em pé, tão forte era seu transe.
Os desacordados, na verdade, não dormem apenas, Peixoto explica. Passam por uma espécie de anestesia celestial, um pré-operatório para as cirurgias que viriam a seguir. E, como o resultado do procedimento é fruto de um encontro de fés – a do fiel e a do pastor – têm mais chance de acordarem mais magros: por estarem inconscientes, não há espaço para a dúvida que os impediria de receber o milagre, afirma Peixoto.
As moças e o menino, que acordam de um “sono profundo” de 15 minutos, estão convictos de ter emagrecido. E quando todos os outros que pediam milagres saem do altar, são rapidamente entrevistados pelo pastor. Embora a promessa de emagrecimento instantâneo seja um tanto espantosa, os fiéis agradecidos a tratam com naturalidade: algumas mulheres dizem ter as calças mais frouxas, puxando o cós das roupas; outras asseguram que as dobras da barriga desapareceram; o menino, com a camiseta um pouco folgada, jura que ela antes estava justíssima.
Sempre que alguém se apresenta com calça legging ou segunda pele, o pastor reclama. Avisa que não se deve vir de roupas colantes porque desse jeito é mais difícil sentir o emagrecimento.
Marta Gonzalez, a estudante de biologia que dormiu em pé, tivera a cintura modelada no dia anterior como um bônus. Na verdade, fora ao culto para resolver uma dor na lombar, mas sentiu sua blusa se mexer inexplicavelmente, envolvida por uma força estranha. “Queria emagrecer pouco, só uns três ou quatro quilos, mas cheguei em casa depois do culto e uma calça que antes nem fechava, me coube. Daqui a pouco fico lisinha, com barriga tanquinho!”, ri. Já a cozinheira Rosilda Rodrigo fora ao culto na noite anterior com propósitos estéticos bastante claros. Tomava Fluoxetina e Rivotril para controlar a ansiedade e a gula, e já tentara queimar gorduras até com chá de berinjela e noni. Só Jesus a salvou. Relatou ter emagrecido seis quilos na noite anterior, e quando chegou sua vez de dar o testemunho à frente dos outros fiéis, puxava a blusa e a calça, mostrando quão frouxas ficaram.
Diet dom. Pastor há 30 anos, Cesar Peixoto conta que se tornou evangélico por causa de incongruências entre o que a Bíblia e o catolicismo pregam. Era essa a religião que seguia aos 19, quando começou a namorar uma moça evangélica que acabou chamando sua atenção para a adoração de imagens e de santos, proibida no Livro Sagrado e tão característica do catolicismo. Não teve respostas satisfatórias quando resolveu levar questões como essa a um frade e decidiu sair da igreja. Ex-torneiro mecânico, trabalhou na Fábrica de Escovas Suissa enquanto fazia o curso de teologia no Instituto Teológico Monte Calvário, no Rio de Janeiro. Até o dia em que sentiu um chamado divino e resolveu se tornar pastor.
“A Cristo não é diferente de outras igrejas evangélicas. Somos como a Quadrangular, como a Universal: acreditamos que os milagres que Jesus fez no passado ele pode fazer hoje”, prega Peixoto. Atualmente existem, na contabilidade do pastor, 3 mil Casas da Bênção, “algumas nos EUA, em Portugal, em Angola e na África do Sul”. A sede, com capacidade para 10 mil fiéis, fica em Brasília.
Foi em Conselheiro Lafaiete, cidade de quase 200 mil habitantes em Minas Gerais, que Peixoto adquiriu o dom que hoje lhe dá fama. Em 1993, ele já oferecia o cardápio básico de milagres pentecostais: curava doenças, levantava paraplégicos e fazia sumir dores inexplicáveis. Em busca de um diferencial e com a esperança de pedir a Deus o dinheiro necessário para erguer uma igreja no centro da cidade, conta que orou no topo de um monte, quase à meia-noite, por 40 dias consecutivos. Peixoto explica que a prática remete a Jesus, que também tinha o costume de rezar em lugares ermos, adequados aos pregadores que querem adorar a Deus no volume que julgarem adequado, sem constrangimentos.
No início dos 40 dias, o pastor subia o monte com 20 pessoas de sua congregação, que acabaram afugentadas pelo frio até o fim da provação. Ele, no entanto, perseverou sozinho até o 40º dia e alcançou a graça: depois disso, começou a perceber que, ao fim de seus cultos, algumas pessoas acordavam com as roupas largas. Seu novo – e popular – dom era curar a obesidade. Cura, aliás, que pode ter contornos bastantes flexíveis. Uma das fiéis impôs a Enedina uma condição antes de receber a bênção: “Ele só não pode tirar nada da minha bunda, que eu ainda quero casar”.
O pastor, no entanto, faz questão de ressaltar que o objetivo da oração não tem a ver só com vaidade. “A obesidade é uma doença. Mata 40% mais que a aids no mundo”, explica, professoral, citando a hipófise como a glândula que controla a fome e exorcizando males como o hipotireoidismo, que pode provocar aumento de peso. Pouco antes do culto, pastor Peixoto tirou de uma pasta de couro recortes de jornais e revistas, entre eles um tabloide capixaba notório pela inverossimilhança, com os títulos: “Profissional obeso ganha salário menor”, “Eliminados por estarem acima do peso”, “Galera não quer saber de gordinhos”. Vade retro!
Os recortes parecem ecoar a ambiguidade de Peixoto e seus milagres, no limite do verificável. Seu tom mescla a seriedade concisa dos executivos e palestrantes de autoajuda com um traquejo informal das ruas. Usa a gíria “suave” da mesma maneira que alguns jovens paulistanos e, aos 54 anos, tem um ligeiro ar de garotão, quase imperceptível. Parece acreditar no que faz, e não é do tipo falastrão desesperadamente simpático: fala só o necessário. Com 1,74m de altura e 67 quilos, diz que em sua família ninguém jamais precisou de dieta. “Posso comer até um boi que não engordo”, exagera. Rosane Peixoto, mulher de Cesar, tem “peso normal”, ele avalia. Também é pastora, mas não é capaz da miraculosa queima de gordura que Peixoto pratica. A filha do casal, Estefani, de apenas 9 anos, é magra o suficiente para também não precisar do auxílio paterno nesse quesito.
Ainda assim, com fé em Deus, Peixoto tem feito cerca de 16 campanhas por ano atraindo mais fiéis à igreja e divulgando os milagres de que o Espírito Santo é capaz, a convite de pastores de outras congregações ou de pessoas que tomam conhecimento de seu trabalho pela internet, em vídeos no YouTube que exibem fiéis apertando os cintos e forçando a cintura das calças e saias, com a graça de Deus – em imagens que trazem seu número de telefone. Peixoto jura que não cobra pela oração, mas tem as excursões de evangelização bancadas, quando convidado. Nesse esquema, conta que já foi ao Paraguai e à Argentina emagrecer hermanos.
Foi em solo brasileiro, em Cariacica, que a vendedora de roupas Selma Bergamim recebeu o milagre da lipoaspiração do pastor Cesar Peixoto. No relato de Enedina, ela teria emagrecido oito quilos em uma semana. Entrevistada pelo Aliás, esclareceu que o “milagre” levou na verdade dois meses. Da primeira vez que recebeu a oração, diz Selma, não funcionou porque ela não teve fé o bastante. Na segunda bênção, percebeu a graça divina na saia jeans justinha que usava – que inexplicavelmente se fez larga. Confessa que andava um pouco deprimida nos últimos tempos e sentiu “uma leveza” logo após o procedimento. Quando lembra de como era gordinha, ri satisfeita. A prova do milagre? Uma foto 3 x 4, que Selma tira do bolso e mostra ao repórter, o rosto espremido entre bochechas cheíssimas.
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