No Estado laico, como o brasileiro, a preferência religiosa era para ser um fato superado. Não é. Acreditar no que quiser e do jeito que bem entender deixou de ser uma questão de espírito, portanto pessoal, para se tornar uma normatização burocrática, de interesse de grupos. Pela experiência do Brasil com leis, isso vai virar um inferno. Ao mesmo tempo em que se recorre a laicidade para defender o direito à liberdade religiosa, usa-se esse direito para exercer o preconceito e a ignorância.
Por Cleber Oliveira, no D24am
Dois episódios são exemplares: a intenção do Ministério Público Federal (MPF) de São Paulo em retirar a expressão ‘Deus seja louvado’ das cédulas de Real e a recusa de estudantes evangélicos da Escola Estadual Senador João Bosco, de Manaus, em fazer trabalho sobre a cultura africana a partir do livro ‘Jubiabá’, de Jorge Amado, que envolve o sincretismo religioso.
Numa cultura com diversidade de crenças, como a brasileira, ainda surpreende a particularização de dogmas e a estupidez de argumentos para justificá-la. A utilizada pelo procurador regional dos Direitos do Cidadão, Jefferson Aparecido Dias, é digna de gargalhadas. Ele reconhece que a maioria da população segue religiões de origem cristã (católicos e evangélicos), mas justifica em sua propositura ‘contra’ Deus na cédula de Real: “Imaginemos a cédula de real com as seguintes expressões: ‘Alá seja louvado’, ‘Buda seja louvado’, ‘Salve Oxossi’, ‘Salve Lord Ganesha’, ‘Deus Não existe’, declarou”.
A preocupação do magistrado é com a semântica, não com a infração do Estado laico, que não é tão laico assim. Jefferson Dias confunde o signo da representação gráfica da divindade suprema com a nomenclatura do idioma. Deus é um só, mas seus nomes são vários, o que legitima a diversidade religiosa. O fato de Deus estar simbolizado em português é uma opção cultural e em nada anula ou ofende as demais culturas religiosas.
No dólar, a frase ‘Em Deus nós confiamos’, com o Divino grafado como ‘God’, nunca motivou a revolta de ninguém, assim como o uso de crucifixo em prédios públicos e a existência de feriados religiosos no calendário civil brasileiro também não privilegiam os cristão. Apenas desmistificam a laicidade do Estado, o que contradiz a Carta Magna. Como bem decidiu o Conselho Nacional de Justiça, os crucifixos presentes nas salas dos tribunais, casas legislativas e repartições públicas são uma representação da cultura nacional e, por isso, devem permanecer lá.
Diz o inciso VI do Artigo 5º da Constituição: “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”. Segundo o professor André Ramos Tavares, da Universidade Mackenzie, há ainda garantias de respeitar a história das religiões pela simples obrigação constitucional de preservar a cultura e os costumes do País.
Nesse caso, os cultos religiosos africanos deveriam ser estudados como manifestação cultural e não rejeitados como coisa do diabo. Se a fé define nossa conduta moral, a religião deveria inspirar a sabedoria
e não a ignorância a que os evangélicos da Escola João Bosco preferem se submeter. Deveriam aprender, antes de tudo, que a neutralidade laica é impossível porque o homem tende a se manifestar sempre, como o fazem agora. Ao negar a cultura africana, os evangélicos cultivam o fundamentalismo religioso. A ‘santa’ inquisição e o terrorismo islâmico estão aí para deixar claro que, quando a opção é negar o direito dos povos de se manifestar a Deus conforme seus valores culturais, o resultado é o culto à morte e o desprezo pela vida.
Tanto o procurador paulista quanto os alunos evangélicos de Manaus deveriam dar o exemplo de tolerância. Afinal o que está em jogo não é a fé, mas seu simbolismo cultural. Em vez do estado de espírito, busca-se impor uma verdade absoluta a partir de crenças diferenças. Nessa polêmica, só Deus tem razão em não tomar partido.
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