Nasci condenado a viver uma só vez. Nessa irredutível tarefa de viver, tento dar a cada instante o valor de uma eternidade. Drummond avisa que, para todos, chega um tempo em que não adianta morrer… um tempo em que a vida é uma ordem. A vida apenas, sem mistificação. No imperativo de encarar esse sem mistificação, digo: nasci preso à vida.
Estar preso à vida significa que não escolhi meus ancestrais. Sou neto, irmão e parente de tios e primos que não pedi. Eles também nasceram obrigados a me terem como família. Todos vimos ao mundo com nossas histórias cerzidas em circunstâncias arbitrárias. Se o entorno da minha existência merece festa ou lamento, muito dele não aconteceu por opção minha.
Nasci sem controle sobre os detalhes desalinhados da grande história que me antecedeu. O mundo já dava voltas antes de eu existir. Getúlio, Franklin Roosevelt, Wiston Churchil, Picasso, Camus, Che Guevara, Pio XII, Marilyn Monroe, já existiam antes de meu primeiro choro na maternidade. A terra não parou para me dar bem-vindo – noção que pode me colocar em meu devido lugar; saber-me mero cisco do universo me dá boa chance de esvaziar pretensões narcisistas.
Se cheguei atado ao tronco da vida e sem controle de eventos históricos, também não tenho condições de conhecer os desdobramentos das decisões que outros tomaram – e que não pensaram em mim quando decidiram. Não sou elo imprescindível na cadeia inexorável dos fatos.
Me vejo forçado a construir a existência como um arquiteto que monta sua maquete sem que lhe tenham dado qualquer esboço. Às apalpadelas, aprendo a ser homem, pai, amigo, companheiro. Na estrada que percorro, ninguém me antecedeu. Abro picada com as mãos, muitas vezes, feridas. Assumo a missão de tornar-me eu mesmo e a vocação de adensar a minha própria identidade. Tenho que terminar parecido comigo. Espero festejar o dia em que eu conseguir a melhor versão de mim.
Se Sartre estiver certo que fomos condenados à liberdade, considero-me sentenciado a não carregar culpas. Se há um mandado existencial que ultrapassa as margens da religião, ele consiste em converter a pulsão de morte numa força geradora de maturidade. Só nessa liberdade atravessamos a vida como personagem de um romance em que o autor não definiu o fim – em cada capítulo a história pode dar guinadas inéditas e o leitor nunca antecipa um final doloroso ou feliz.
Soli Deo Gloria
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