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"Meus filhos terão computadores, sim, mas antes terão livros. Sem livros, sem leitura, os nossos filhos serão incapazes de escrever - inclusive a sua própria história." Bill Gates

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quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Um Deus que odeia Seus inimigos não pode exigir que eu ame os meus



Por Hermes C. Fernandes, no Cristianismo Subversivo

Alguém, por favor, ajude-me a entender a desconcertante contradição entre a exigência do evangelho para que amemos aos nossos inimigos e a ira de Deus contra Seus próprios inimigos. Não devemos “imitar a Deus como filhos amados”? Como posso amar e perdoar a meus inimigos se Deus odeia os seus? Se isso não é uma contradição, então, temos que admitir que nossa interpretação é que deve estar equivocada. Ou será que Deus é do tipo que diz “faça o que eu mando, mas não faça o que eu faço” Como poderia exigir que déssemos de comer ao nosso inimigo, mas ao mesmo tempo ameaçar enviar Seus inimigos para serem torturados eternamente?

Quero propor que deixemos de lado a paixão, e examinemos friamente a questão.

Muitos de nossos pressupostos são frutos de equívocos passados de geração em geração, mas que ninguém tem coragem de confrontar e revisar. Jesus abriu-nos um importante precedente no Sermão da Montanha ao propor a revisão de alguns deles. Ao todo, são seis interjeições de Cristo que começam com “Ouvistes que foi dito (...) Eu, porém, vos digo”( Mt.5:21,27,31,33, 38,43). Jesus não propõe uma mudança nos mandamentos em si, mas na interpretação que se fazia deles. Uma coisa é o que lemos, outra é como lemos. Uma tem caráter objetivo, a outra, subjetivo. Por isso, Jesus perguntou ao doutor da lei: Que está escrito na lei? Como lês?” (Lc.10:26).

Numa das interjeições, Jesus diz:

 “Ouvistes que foi dito: Amarás o teu próximo, e odiarás o teu inimigo. Eu, porém, vos digo: Amai a vossos inimigos, bendizei os que vos maldizem, fazei bem aos que vos odeiam, e orai pelos que vos maltratam e vos perseguem; para que sejais filhos do vosso Pai que está nos céus.” Mateus 5:43-44

De fato, em lugar algum das Escrituras encontramos instrução direta sobre “odiar os inimigos”. O mais próximo disso é o que lemos em Deuteronômio 33:27: O Deus eterno é a tua habitação, e por baixo estão os braços eternos; e ele lançará o inimigo de diante de ti, e dirá: Destrói-o.” Deduziu-se daí que Deus estivesse instruindo Seu povo a odiar a seus inimigos. Como poderíamos destruir a quem não odiássemos? Foi provavelmente baseado nisso que Davi compôs seu hino: “Persegui os meus inimigos e os destruí, e nunca voltei atrás sem que os consumisse” (2 Sm.22:38). Tenho a impressão que é também baseado nisso que muitos pregadores contemporâneos insistem com sua teologia revanchista, instigando o povo a desejar ver seus inimigos sob seus pés. Todavia, há que se levar em conta o contexto em que tanto Moisés quanto Davi se expressaram de tal maneira. Em ambos os casos, o povo de Israel estava envolvido em campanhas militares, e precisava de garantias de que seria bem-sucedido. Não se pode tomar tais palavras e aplicá-las num contexto pessoal. Sem contar que hoje vivemos sob a égide de uma nova aliança, onde o “olho por olho” foi substituído pelo “ofereça a outra face”.

Quando Jesus foi rejeitado em uma aldeia samaritana, dois dos Seus discípulos, Tiago e João, que também haviam sido discípulos de João Batista, propuseram que se orasse para que Deus derramasse fogo do céu e consumisse aquela gente. Eles chegaram a citar Elias, justificando nas Escrituras o seu espírito revanchista. Mas Jesus os repreendeu, dizendo: Vós não sabeis de que espírito sois. Porque o Filho do homem não veio para destruir as almas dos homens, mas para salvá-las” (Lc.9:55-56). Não somos discípulos de Moisés, Davi ou Elias. Somos discípulos de Jesus, e compete ao discípulos buscar assemelhar-se ao seu mestre.

Ao denunciar o espírito revanchista do Seu povo e propor uma nova via, Jesus corria o sério risco de ser chamado de herege.  Jesus estava questionando uma pseudo-verdade que se estabelecera naquela cultura por vários séculos. Em vez de odiar os inimigos, Seus discípulos deveriam amá-los, caso contrário, jamais se pareceriam com Seu Pai que está nos céus.

Ora, se Deus requer que amemos a nossos inimigos, podemos inferir que Ele igualmente ame a Seus inimigos, sem exceção.  Se Deus ama somente aqueles que O amam, então Ele não é melhor do que o mais vil pecador. Pelo menos, esta é a conclusão inevitável a que chegamos ao lermos: Se amardes aos que vos amam, que mérito há nisso? Pois também os pecadores amam aos que os amam. E se fizerdes bem aos que vos fazem bem, que mérito há nisso? Também os pecadores fazem o mesmo” (Lc.6:32-33)?

O que dizer, então, do provérbio que diz “eu amo os que me amam” (Pv.8:17)? Trata-se, na verdade, de uma alegoria, onde a sabedoria é apresentada de maneira personificada. É a sabedoria que declara amar os que a amam. Não se pode colocar isso nos lábios de Deus.

O problema não termina aí. Há ainda outras passagens que parecem dizer que Deus só ame os que o amam. Veja, por exemplo, João 14:21, onde Jesus diz: Aquele que tem os meus mandamentos e os guarda, esse é o que me ama; e aquele que me ama será amado de meu Pai, e eu o amarei, e me manifestarei a ele.” O que Jesus, de fato, está dizendo aqui é que aquele que O ama, o faz justamente por ser amado por Seu Pai. Logo, nosso amor a Deus resulta de Seu amor por nós, e não vice-versa.  Ou não é isso que as Escrituras claramente dizem?: Nós o amamos a ele porque ele nos amou primeiro” (1 Jo.4:19). O que nos confunde um pouco é o fato de que o grego tem certos tempos verbais que se perdem quando o texto é traduzido para o nosso idioma. Um deles, por exemplo, é o aroisto. Uma tradução possível para esse versículo seria: “Aquele que tem os meus mandamentos e os guarda, esse é o que me ama, e aquele que me ama é o que é amado de meu Pai...”

O fato inegável é que nada fizemos para merecer o Seu amor. E nada podemos fazer para alterar o que Ele sente por nós. Segundo Paulo, todos éramos por natureza filhos da ira, como os outros também. Mas Deus, que é riquíssimo em misericórdia, pelo seu muito amor com que nos amou, Estando nós ainda mortos em nossas ofensas, nos vivificou juntamente com Cristo (Ef.2:5-6). Apesar de merecermos Sua justa ira, Ele ainda assim nos amou.

Em outra passagem, Jesus diz: “O Pai mesmo vos ama; visto que vós me amastes e crestes que eu saí de Deus” (Jo.16:27). Pode parecer que Ele estivesse afirmando que o amor do Pai por nós se deve ao fato de amarmos a Seu Filho. Porém, a verdade é exatamente o oposto. O amor que temos por Jesus é tão somente a evidência do amor com que o Pai nos ama.

Seu amor por nós independe de nosso amor por Ele. Paulo parece ter compreendido as implicações éticas por trás desta revolucionária verdade. Constrangido por este amor, o apóstolo decidiu igualmente amar às últimas consequências. Por isso, confessou: Eu de muito boa vontade gastarei, e me deixarei gastar pelas vossas almas, ainda que, amando-vos cada vez mais, seja menos amado” (2 Co.12:15). Será que o amor de um simples mortal superaria o amor de Deus? Se Paulo pôde amar mais do que o próprio Deus, então, passemos a cultuá-lo no lugar de Deus. É claro que isso não é possível. Ninguém jamais amou como Ele nos amou, ama e amará. Ainda que seja menos amado... Ainda que não O correspondamos.
E quanto à ira justa de Deus? A Bíblia parece clara ao afirmar que Deus ama a justiça, mas abomina a iniquidade. Sua ira é destinada a todos os que praticam a injustiça. Concluímos, precipitadamente, que Deus seja incapaz de amar àqueles sobre quem repousa a Sua ira.

Para corrigir nossa perspectiva, temos que entender que o termo “ira” não é antônimo de “amor”. O contrário de amor é indiferença. Mesmo a ira divina nada mais é do que uma faceta do Seu amor. Há mais amor numa única gota da ira divina do que em todo o oceano de amores humanos.

Por ser amor, Deus é incapaz de manter-se indiferente a qualquer uma de Suas criaturas. Amor não é apenas um dos Seus atributos, mas Sua essência. Ele não tem amor. Ele é amor! Mesmo na ira, Ele se lembra da misericórdia (Hc.3:2), razão pela qual não somos consumidos por Sua justa indignação contra o pecado (Lm.3:22). E Seu “ódio” pelo pecado é proporcional ao Seu amor pelo pecador. Ele odeia o pecado justamente por causa do mal que causa à Sua criatura.

Enquanto Sua ira dura só um instante (Sl.30:5), Sua misericórdia dura para sempre. Tenho a impressão de que esta verdade foi invertida. Na compreensão de muitos, a misericórdia dura um ínfimo momento, enquanto Sua ira dura para sempre.

Seu amor tem sempre a palavra final. Nas palavras de Tiago, “a misericórdia triunfa sobre o juízo” (Tg.2:13). O salmista garante: Não reprovará perpetuamente, nem para sempre reterá a sua ira (...) Mas a misericórdia do Senhor é desde a eternidade e até a eternidade” (Sl. 103:9,17).

Mesmo a rejeição provocada pelo pecado, a mais eloquente expressão da ira de Deus, não é eterna, tampouco, definitiva. Além de ter duração limitada, Sua ira também é devidamente dosada, pois Ele conhece a nossa estrutura: Por um breve momento te deixei, mas com grandes misericórdias te recolherei; com um pouco de ira escondi a minha face de ti por um momento; mas com benignidade eterna me compadecerei de ti, diz o Senhor, o teu Redentor” (Is. 54:7-8). Somente um Deus que agisse assim poderia exigir: “Dê a sua face ao que o fere, e farte-se de afronta. Pois o Senhor não rejeitará para sempre” (Lm.3:30-31).

Quando aplicado a Deus, o termo “ira” é sinônimo de “juízo”, “castigo” ou “correção”, e não de “ódio”. Ao corrigir-nos, Deus demonstra o quanto Se importa conosco, sem jamais desistir de amar-nos.

“Se os seus filhos abandonarem a minha lei e não seguirem as minhas ordenanças, se violarem os meus decretos e deixarem de obedecer aos meus mandamentos, com a vara castigarei o seu pecado, e a sua iniquidade com açoites; mas não afastarei dele o meu amor; jamais desistirei da minha fidelidade.” Salmos 89:30-33

Tal verdade ecoa por toda a Escritura. O escritor de Hebreus diz que o Senhor corrige o que ama, e açoita a qualquer que recebe por filho” (Hb.12:6). E ainda: “se pecarmos voluntariamente, depois de termos recebido o conhecimento da verdade, já não resta mais sacrifício pelos pecados, mas uma certa expectação horrível de juízo, e ardor de fogo, que há de devorar os adversários” (Hb.10:26-27). Portanto, não adianta tentar compensar nossos erros com sacrifícios, penitências e boas obras. A única coisa que nos resta é a correção dada por Aquele que nos ama infinitamente. Esse “ardor de fogo” nada mais é do que o juízo de Deus sobre o pecado. É o fogo que purifica a prata para que possa refletir perfeitamente a imagem do ourives. Sua justiça não é apenas retributiva, punitiva, mas, sobretudo, corretiva. Vai doer, porém, vai curar.

O que nos torna “inimigos de Deus” são nossas más obras (Cl.1:21). Mesmo depois de havermos sido convertidos a Ele, resta-nos resquícios do velho homem. Trata-se de um impostor que insiste em habitar em nossa carne. É este adversário que precisa ser consumido. Por isso, Tiago nos instrui a que nos despojemos de toda sorte de imundícia e de todo vestígio do mal (Tg.1:21). O fogo visa depurar-nos, eliminar tudo o que nos afasta de Deus, inflamar nossas consciências, constrangendo-nos e levando-nos ao arrependimento.

Para os que creem, basta olhar para cruz e o amor ali tão magnificamente expressado, e sua consciência é logo inflamada.  Todavia, nem todos se dispõem a crer. Para muitos, o fato de Deus ter amado o mundo a ponto de entregar Seu Filho para morrer por nós não passa de uma fábula arquitetada pela religião. Como, então, poderíamos atear fogo em suas consciências? Paulo nos apresenta a saída:“Portanto, se o teu inimigo tiver fome, dá-lhe de comer; se tiver sede, dá-lhe de beber; porque, fazendo isto, amontoarás brasas de fogo sobre a sua cabeça. Não te deixes vencer do mal, mas vence o mal com o bem”  (Rm.12:20-21). Brasas são amontoadas na consciência de quem é alvo de nosso amor sem merecê-lo.  Um santo constrangimento leva-o a perceber sua miséria e carência. E é ali, pela consciência, que nosso adversário começa a ser devorado pelas chamas da ira amorosa de Deus.  Foi este “fogo consumidor” que levou o centurião que crucificara a Jesus a concluir: “Verdadeiramente, este era o Filho de Deus” (Mt.27:54)! Pode-se rejeitar as informações contidas no Evangelho, mas qualquer ser humano é vulnerável a um gesto de amor sincero. O centurião jamais ouvira sobre o Evangelho. Não houve ali um assentimento intelectual. Porém, ouvir Jesus pedir que o Pai perdoasse aqueles que O crucificavam, e vê-lo tratar dignamente àquele moribundo crucificado à Sua direita, despertou no soldado romano uma profunda admiração, que levou-o à conclusão de que Aquele homem não era menos do que afirmavam Seus discípulos.


Não há recurso apologético mais poderoso do que o amor. Foi o próprio Jesus quem afirmou que o mundo nos reconheceria como Seus discípulos se tão-somente nos amássemos uns aos outros. Se quisermos, portanto, alcançar o coração dos que nos odeiam, não nos resta alternativa senão amá-los profundamente, da mesma maneira como Cristo nos amou quando ainda éramos Seus inimigos. E amar é muito mais do que nutrir um bom sentimento. Amar é servir, promover o bem, sem esperar absolutamente nada. Só assim, nos revelaremos ao mundo como “filhos do Altíssimo; porque ele é benigno até para com os ingratos e maus” (Lc.6:35).

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