tsunami no Japão |
Por qualquer critério de justiça, os haitianos deveriam constar entre os últimos a merecerem um ataque da fúria divina. Não é necessário citar os índices da miséria que assola a antiga colônia francesa. No Haiti a pobreza é crônica, injusta, maligna. Os índices de mortalidade infantil são os mais altos do planeta. Nem se fala da anarquia política. Sucessivos ditadores emperraram a distribuição dos parcos recursos vindos de ajuda humanitária. Tenho amigos que trabalham em ONGs em Porto Príncipe e eu sei da penúria dos haitiano. Há poucos anos, um terremto devastou o que restava do Haiti. O abalo aconteceu logo depois que um furacão arrasou os bairros super povoados. Depois do Haiti, outras hecatombes aconteceram em vilarejos do Paquistão, Filipinas e Bangladesh.
No anseio de responder a questionamentos que tais tragédias suscitam, alguns as colocam em pelo menos três categorias: 1. No pecado de Adão e Eva. O pecado original teria produzido consequências nefastas na natureza. O mundo caído se tornou nosso inimigo. Isto é, a natureza foi destruída pelo pecado original e, ao contrário do Paraíso, deixou de ser harmônica. Furacões, terremotos e inundações revelam o tamanho do estrago que o pecado produziu; 2. No pecado de um país específico. Como Deus não tolera o pecado, ele vez por outra pune com inundações, fome, pragas e terremotos. Para disciplinar e impedir o pecado de alastrar-se, ele, pedagogicamente, fere. Deus tem liberdade de torturar arbitrariamente quem desejar. Ele derrama o cálice de sua ira, indiscriminadamente, sobre bebês (batizados ou não) gângsters brutais, enfermeiras ou sacerdotes; 3. No propósito eterno de Deus. Ele permite que grandes tragédias aconteçam como dentes de uma engrenagem que, em última análise, trará glória para si. Deus também quer provocar ações solidárias e para isso ele tem uma vontade permissiva – quer dizer, ele faz vista grossa para que algumas coisas aconteçam visando incitar iniciativas nobres; Deus deixa acontecer coisas que ele não gostaria para que a igreja se mobilize e mostre ao mundo como se comportam os verdadeiros salvos.
Obviamente tais respostas, além de inadequadas, geram perguntas constrangedoras. Qual o sentido de matar indiscriminadamente feiticeiros anônimos e junto sacrificar a extraordinária Zilda Arns, como aconteceu no Haiti? Que Deus furioso é esse que mata bebês e empregados da ONU que se doam para resgatar um país de sua mais abjeta penúria? Quanto sangue esse Deus ainda precisa derramar até que o pecado de Adão seja finalmente vingado? Por que os mais ricos têm melhores chances de se protegerem de um terremoto? Se o chão tremer no Japão com a mesma intensidade que na Bolívia, morrerão mais bolivianos.
Recebo a notícia de grandes tragédias e fico estarrecido. Choro diante da televisão. Doou dinheiro a ONGs com credibilidade. Expresso pesar. Paquistão e Filipinas ficam longe, por isso não evito a sensação de impotência. No terremoto do Haiti, véspera do meu aniversário, fui atropelado por cenas horrorosas. Cara a cara com cadáveres insepultos, tentei coordenar minhas convicções. Eu precisava ligar os pontos da minha espiritualidade. Descer do pedestal da minha verdade.
Nesses momentos, vejo a necessidade de reconsiderar as afirmações que formaram o chão de minha fé. Algumas simplistas. Continuar com as mesmas declarações diante de cenas grotescas, não apenas me alienaria como me insensibilizaria. Um dogma que não se permite mudar, deforma.
No dia seguinte a uma tragédia, escrevo sabendo que vou provocar inquietação. Círculos fundamentalistas do cristianismo se sentirão aviltados. As mesmas frases se repetem: Irresponsável com o texto bíblico. Propagador de um Deus pequeno e desnecessário. Incoerente. Alguns me criticam por buscar resposta onde não existe. Na religião é comum pendurar placas: Proibido especular sobre o que Deus escondeu. Mistérios são interditos. Sobram, porém, afirmações piedosas em momentos trágicos: Não é hora de fazer teologia; é hora de estender a mão ao que sofre.
Explicar por explicar é tão estéril como negar por alienação. De fato, não adianta entrincheirar-se sem real interesse de alterar a circunstância. Repaginar a teologia deve implicar em compromisso de responder ao sofrimento do outro.
Esboço, ponto por ponto, algumas objeções minhas ao senso comum que prevalece entre religiosos sobre o mal provocado por fenômenos da natureza:
1. Os mistérios insondáveis da divindade. Em aporias, parece fácil escapar com afirmações superficiais: isso é mistério e não convém perder tempo investigando sobre o que não se vai saber nunca”. Acredito que tal postura pode refletir muitas vezes preguiça ou falta de coragem. Demolir conceitos antigos requer ousadia. Entretanto, perguntar não é pecado. (Em Isaías, Deus ordena que o povo o questione: Vinde e argui-me.). Alguém me provocou no twitter: De onde vem sua petulância de querer repensar tudo?
Qual o problema de querer repensar tudo? Não acredito que a fé se esvazie diante de questionamentos difíceis. Se alguma convicção não se sustentar diante do mais feroz inquiridor, talvez ela não mereça continuar. Perguntas podem levar a novas perguntas e essas indagações, a mais dúvida. E mesmo que continuemos sem resposta definitiva, o aprofundamento das questões, junto com a busca por mais respostas, fascina. O filósofo alemão Leibniz dizia que a visão de um Deus que encobre seus atos malévolos, o tornaria pior do que o imperador Calígula, que escrevia as leis em letras minúsculas e mandava publicá-las em um lugar tão alto, que ninguém as conseguia ler. De fato, um Criador que age na penumbra, sem explicitar abertamente seus atos, não passa de um monstro.
2. Dissimular o argumento com frases piedosas. Entre religiosos, o debate se esvazia muitas vezes antes que se consiga elaborar os conteúdos. Os sustos que uma indagação mais aguda levanta geram espantos intimidadores. Então, você está querendo acabar com a soberania de Deus? Entre teístas, desafiar a onipotência divina é uma apostasia inominável e coloca qualquer debate sob suspeita. O contorno mais conservador do teísmo assume que Deus planejou, governa, gerencia e antecipa todos os eventos. Não adianta querer argumentar com um fundamentalista. Ele rotula, causa o mal estar necessário que deseja e ninguém mais ouve o que será explicado daí em diante. Quando um dogma é internalizado como A Verdade, qualquer tentativa de chamar ao bom-senso esbarra numa questão de credulidade. “Eu creio assim e não admito que você tente me dissuadir do contrário”. Ponto final.
3. Deus tem tudo sob controle? Sim e não! A ambiguidade não é minha, mas do texto bíblico. A Bíblia, ao contário do que preconizam os fundamentalistas, não é linear e homogênea. Alguns textos, principalmente na Bíblia hebraica, narram sobre Deus em absoluto controle de cada mínimo detalhe da vida das pessoas e dos acontecimentos históricos. Outras passagens, todavia, descrevem claramente a vontade de Deus não sendo cumprida.
Lucas 7.30 diz que indivíduos possuem liberdade para dar as costas ao conselho ou propósito (grego, boulê) de Deus: Mas os fariseus e os peritos da lei rejeitaram o propósito (boulê) de Deus para eles, não sendo batizados por João.
Lucas 13.34 declara que a vontade (grego, thelô) de Deus pode ser frustrada. O lamento de Jesus sobre Jerusalém é emblemático: Jerusalém, Jerusalém, você, que mata os profetas e apedreja os que lhe são enviados! Quantas vezes eu quis reunir os seus filhos, como a galinha reúne os seus pintinhos debaixo das suas asas, mas vocês não quiseram!
Qual a diferença entre a vontade de Deus ser frustrada por um fariseus ou por um estuprador? O estupro seguido de morte da moça não é da vontade de Deus. A favela não é da vontade de Deus. A criança que morre de diarréia no alto da Amazônia não é da vontade de Deus. O dinheiro da corrupção depositado na Suíça não é da vontade de Deus. Se nenhuma dessas torpezas é parte de uma vontade misteriosa, o malvado não cumpre qualquer propósito providencial. E se Deus não está no controle da chacina, do genocídio, do campo de concentração, é importante abandonar a ideia de uma divindade títere.
Trancar-se no preceito absoluto e inquestionável de soberania como essencial, desconecta a teologia da vida. Pinçar um ou outro versículo bíblico para valer a noção de que Deus pode arbitrariamente infligir sofrimento sobre quem quiser, transforma o mal em tijolo necessário na construção de uma parede maior: seu propósito. Deus vira, então, parceiro de facínoras. Se Deus precisa sujar as mãos para conduzir a história ao seu zênite, ele não merece a consideração de ninguém. Se algum calnivista dorme bem com o que Susan Neiman chama de a lógica da onipotência enlouquecida, eu não consigo:
… o número daqueles que serão para sempre amaldiçoados é muito maior do que o número daqueles que acabarão sendo salvos. Deus decide quem será redimido no instante do nascimento ou até antes. Qualquer ação que você realize pode se refletir em suas possibilidades de arder para sempre, mas nada que você faça poderá mudá-las. O próprio Sade esforçou-se, mas foi incapaz de inventar algo pior, e nenhum tirano moderno sequer tentou. A morte é uma misericórdia totalmente ausente nesse caso… O Criador é todo-poderoso? Mas é claro. Então ele pode fazer o que quiser? É justamente esse o significado do poder. Ele pode quebrar todas as leis? Bem, ele as criou. As leis da razão? Deveríamos julgá-los? As leis da justiça? Idem, a mesma coisa. Qualquer justiça? Se Ele assim decidir. *
Ganhei inimigos por dizer que o Tsunami, que dizimou centenas de milhares na Ásia, não tinha nada a ver com a vontade de Deus. Permaneço convicto de que o terremoto no Haiti, o tufão nas Filipinas ou os tornados nos Estados Unidos são fenômenos de uma natureza que tanto pode ser mostrar encantadora como bárbara.
Não ofereço todas as respostas para a morte estúpida e desnecessária de milhões. Contudo, assim como o pensamento do judaísmo mudou com Auschwitz, espero que mais teólogos cristãos tenham coragem de questionar seus pressupostos depois de uma tragédia. Continuo disposto a provocar inquietações. Quero suscitar novas perguntas. Caso me indisponha ainda mais com a teologia conservadora, não tem problema; eu pelo menos me despeço das respostas simplistas que já dei. Isso vale muito para mim.
Soli Deo Gloria
*Neiman, Susan – O mal no pensamento moderno – uma história alternativa da filosofia – Editora Difel, Rio de Janeiro, 2003 – p. 32
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