Por Nicholas D. Kristof, The New York Times – O Estado de S.Paulo
Nesta época de polarizações, poucas palavras provocam tanta aversão nos ambientes liberais quanto “cristão evangélico”.
Em parte, isto se explica porque, nos últimos 25 anos, os evangélicos
 foram associados a personagens rabugentos e fanfarrões. Quando os 
reverendos Jerry Falwell e Pat Robertson debateram na televisão se os 
ataques de 11 de Setembro foram uma punição de Deus contra as 
feministas, os gays e os secularistas, Deus deveria tê-los processado 
por difamação.
Anteriormente, Falwell defendera que a aids é “o julgamento de Deus 
sobre a promiscuidade”. Esta presunção religiosa permitiu que o vírus da
 aids se espalhasse, constituindo uma imoralidade maior do que tudo o 
que poderia acontecer nas saunas gays.
Em parte, por causa desta postura bem-pensante, todo o movimento 
evangélico frequentemente foi condenado pelos progressistas como 
reacionário, míope, irracional e até mesmo imoral.
Entretanto, esse menosprezo casual é profundamente injusto, se 
considerarmos o movimento como um todo. Ele reflete um tipo de 
intolerância às avessas, às vezes um fanatismo às avessas, dirigido 
contra dezenas de milhões de pessoas que na realidade se envolveram cada
 vez mais na luta contra a pobreza e na defesa da justiça global.
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| Jonh Stott | 
Essa linha compassiva da corrente evangélica foi dotada de bases 
extremamente sólidas pelo reverendo John Stott, um moderado estudioso 
inglês que influiu de maneira muito mais importante no cristianismo do 
que astros da mídia como Robertson ou Falwell. Stott, que morreu há 
alguns dias aos 90 anos, foi incluído na lista das cem pessoas mais 
influentes do globo da revista Time. Em termos de estatura, às vezes foi
 considerado o equivalente do papa entre os evangélicos de todo o mundo.
Stott não pregou acenando com a ameaça das penas do inferno numa rede
 cristã de televisão. Ele foi um humilde estudioso cujos 50 livros 
aconselham os cristãos a emular a vida de Jesus – principalmente sua 
preocupação com os pobres e os oprimidos – e a se opor a mazelas sociais
 como a opressão racial e a poluição ambiental.
“Os bons samaritanos sempre serão necessários para socorrer os que 
foram assaltados e roubados; entretanto, seria melhor acabar com os 
bandoleiros na estrada de Jerusalém a Jericó”, escreveu Stott em seu 
livro A Cruz de Cristo. “Por isso, a filantropia cristã em termos de 
alívio e ajuda é necessária, mas muito melhor seria um aprimoramento a 
longo prazo, e nós não podemos fugir da nossa responsabilidade política e
 da necessidade de participar da transformação das estruturas que inibem
 este aprimoramento. Os cristãos não podem olhar com tranquilidade as 
injustiças que arruínam o mundo de Deus e degradam suas criaturas”.
Stott deu exemplos das injustiças contra as quais os cristãos 
precisam lutar: “os traumas da pobreza e do desemprego”, “a opressão das
 mulheres”, e na educação, “a negação de iguais oportunidades a todos”.
Para muitos evangélicos que sempre se retraíam quando um 
“televangélico” ganhava as manchetes, Stott era um guru intelectual e 
uma inspiração. Richard Cizik, presidente da Nova Igreja Evangélica 
Parceria para o Bem Comum, que trabalhou heroicamente para combater 
desde o genocídio até a mudança climática, me disse: “Contra a 
charlatanice e a irracionalidade no nosso movimento, Stott permitiu 
afirmar que você é “evangélico” e não deve se arrepender”.
O reverendo Jim Wallis, diretor de uma organização cristã chamada 
Sojourners (Os visitantes), que trabalha em prol da justiça social, 
acrescentou: “John Stott foi o primeiro líder evangélico importante que 
defendeu o nosso trabalho na Sojourners”. Stott, que foi um aluno 
brilhante em Cambridge, também ressaltou que a fé e o intelecto não 
precisam ser conflitantes.
Há muitos séculos, o estudo profundo da religião era 
extraordinariamente exigente e rigoroso; por outro lado, qualquer um 
podia declarar-se cientista e passar a exercer a alquimia, por exemplo. 
Hoje, é o contrário. Um título de doutor em química exige uma formação 
rigorosa, enquanto um pregador pode explicar a Bíblia pela televisão sem
 dominar o hebraico ou o grego – ou mesmo sem mostrar interesse pelas 
nuances dos textos originais.
Os que se denominam líderes evangélicos revelam-se hipócritas, 
transformando Jesus em lucro em lugar de emulá-lo. Alguns parecem 
inclusive homofóbicos, e muitos que se declaram “a favor da vida” 
parecem pouco preocupados com a vida humana depois que ela sai do útero.
 São os pregadores que aparecem nas manchetes e são menosprezados.
Escrevendo sobre a pobreza, as doenças e a opressão, encontrei outros
 ainda. Os evangélicos estão desproporcionalmente dispostos a doar o 
dízimo do que ganham a obras de caridade, em geral ligadas à igreja. O 
mais importante é que se procuramos nas linhas de frente, nos EUA ou no 
exterior, nas batalhas contra a fome, a malária, as violações nas 
prisões, a fístula obstétrica, o tráfico de pessoas ou o genocídio, 
alguns dos mais corajosos que encontramos são cristãos evangélicos (ou 
católicos conservadores, que a eles se assemelham de muitas maneiras) 
que vivem verdadeiramente a sua fé.
Não sou particularmente religioso, mas reverencio os que vi 
arriscando sua vida dessa maneira – e me enoja ver esta fé 
ridicularizada em coquetéis em Nova York.
Por que tudo isto é importante?
Porque tanto as pessoas religiosas quanto as seculares fazem um 
trabalho fantástico em questões humanitárias – mas elas frequentemente 
não trabalham juntas em razão das suspeitas mútuas. Se pudermos superar 
este “abismo divino”, poderemos progredir muito mais no combate às 
mazelas do mundo.
E esta seria, realmente, uma dádiva divina.
[Tradução de Anna Capovilla]
Vi no Blog de Ed René Kivitz 

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