Paulo Brabo
De tudo que não sinto falta na experiência do cristianismo
institucional (e a lista só tende a aumentar) há três ou quatro coisas
cuja mera lembrança me leva o estômago a recuar em sincera repulsa.
Tanto depois, hesito mesmo mencioná-las.
Aqui está uma: estar numa sala com um ou mais líderes, conversando
livremente sobre qualquer assunto, até que alguém interrompe uma pausa
com um suspiro e uma observação:
– Mas o povo não está preparado para ouvir isso.
Ou às vezes, com pureza ainda mais declarada de coração:
– Pena que o povo não está preparado para ouvir isso.
Nessa única frase e no silêncio solidário que a acompanhava nos
congratulávamos por sermos naquela sala líderes esclarecidos tratando de
assuntos controversos que uma parcela dos nossos ouvintes potenciais –
dentre eles talvez você, potencialmente imaturo leitor, – não
considerávamos pronta para enfrentar. Desejávamos que fosse
diferente; queríamos muito que você fosse um cara maduro e que não
corresse o risco de desmoronar diante do que teríamos para revelar. Mas a
realidade era dura e determinadas coisas sentíamo-nos heroicamente
obrigados a calar. Para poupar você.
Testemunhei esta cena tantas vezes, em tantos contextos com tantos
protagonistas diferentes, que tenho de concluir que pelo menos metade
dos líderes e pastores de todos os matizes (e isso para mencionar só a
porção evangélica do cristianismo) propaga e endossa publicamente uma
versão menos controversa da sua crença do que aquela que realmente
abraça, e escondem essa falsidade ideológica por trás da conveniente
piedade de estarem protegendo da confusão e da apostasia a porção mais
despreparada (e, supõe-se, mais numerosa) do seu rebanho.
Naturalmente ninguém é obrigado a propagar aos quatro ventos aquilo
em que realmente crê; eu mesmo deixei de fazer isso há muito tempo. Mas
esses são caras que fizeram de propagar a sua fé a sua vocação e o seu
modo de vida; são sujeitos que afirmam que o destino de cada um,
inclusive o deles mesmos, depende de se abraçar e de se professar de
modo sincero e consistente aquilo em que se crê. E o meu testemunho é
este: grande parte desses caras (talvez a maioria) sonega da sua
pregação pública aquilo em que realmente acredita. Alegam estar
protegendo os mais fracos da controvérsia e da perplexidade, mas nisso
protegem apenas a si mesmos. Porque, graças a Deus, o povo não está
preparado para ouvir, então ninguém deve dizer.
Na prática isso quer dizer que muitos pastores e líderes estão
deixando de partilhar informações, convicções e dúvidas que poderiam se
mostrar grandemente libertadoras para pelo menos parte de seus ouvintes.
E o fazem protegidos pelo álibi da melhor das intenções.
Para trazer à memória um exemplo espetacular dessa mentalidade, basta lembrar (e que seja entre nós a última vez) a omissão dos três últimos capítulos na edição brasileira de Culpa e graça,
de Paul Tournier.
Como ficou provado, a porção mais controversa, menos
ortodoxa e mais libertadora do livro foi sumariamente sonegada dos
leitores brasileiros – isso, porque, sem margem de dúvida, algum punhado
de líderes decidiu muito piedosamente que aquilo “o povo não estava
preparado para ouvir”.
Renira Cirelli, que foi com sua irmã gêmea uma das tradutoras originais do livro, mandou-me um email alguns dias depois de ler meu artigo sobre o assunto.
Sua mensagem, da qual cito a seguir alguns parágrafos, fornece
confirmação para uma história que já não se requeria grande esforço para
reconstruir:
Brabo,
Que pena [que você não me contatou antes de escrever sobre o assunto]! Você ficaria conhecendo toda a verdade de uma testemunha ocular, auditiva e dinossáurica desde os idos de 1975 a 76. Isso mesmo, foi quando entreguei a versão completíssima nas mãos dos responsáveis pela Editora da ABU na época.
Demoraram dez anos para editar e publicar! Fizeram modificações na tradução, não mantiveram o estilo coloquial do Paul Tournier e cortaram os três últimos capítulos por acharem que a ABU seria hostilizada e estigmatizada como universalista.
Entregamos todos os 24 capítulos; não recebemos quase nada pelo trabalho (fizemos mesmo como missão), mas ficamos apaixonadas pelo Paul Tournier (ainda traduzi outra obra dele muitos anos depois). Fiquei muito brava com todos, porque só então descobri que cortariam os três últimos capítulos. Lembro-me como se fosse hoje do diálogo que mantivemos, eu em pé, vinda de ônibus, com um bloco imenso de folhas sulfite datilografadas nas mãos:
“Mas gente, o livro vai ter 18 capítulos sobre culpa e só 3 sobre graça! Vocês já vão alterar bastante o título original. Cada um que leia tudo e tenha seu próprio discernimento. Escrevam uma linha dizendo que a editora não se responsabiliza pelas ideias do autor, sei lá… isso não está certo!”
Voz vencida, mera serviçal do Reino… ainda fiz a tradução e versão das várias cartas daqui pra lá e de lá para cá (entre ABU e Delachaux & Niestlé, na Suíça). As cartas solicitavam a permissão da editora e do autor para serem retirados os três últimos capítulos. Eles concederam a permissão sem muita dificuldade.
Foi só desse modo, com seu conteúdo mais controverso devidamente represado, que o Culpa e graça
chegou ao mercado e ao leitor brasileiro. Foi só desse modo que chegou
às minhas mãos, talvez às suas: depois que gente mais iluminada do que
nós certificou-se que só restava no volume impresso o que estávamos
preparados para ouvir.
Culpa e graça foi publicado em 1985, mas fato é que –
terceiro milênio adentro – estamos longe de abandonar a mentalidade que
levou à mutilação do seu texto, porque ela é alimentada pela nossa
própria obsessão em infantilizar e sermos infantilizados. A questão de
meses eu conversava com um editor cristão que se via diante de dilema
semelhante (e de tentação semelhante) com relação à publicação da
tradução de um autor contemporâneo – e tratava-se de um texto em grande
parte mais ortodoxo do que o de Tournier.
Ainda resta, e em todos nós, a tentação piedosa de censurar. John
Stott era reconhecidamente conservador, mas opinou publicamente que o
relato da criação em seis dias não deve ser tomado literalmente, e que o
ser humano evoluiu a partir de formas de vida menos sofisticadas.
Talvez você compartilhe dessa mesma convicção – mas concordará que essa é
uma opinião que “o povo” está “preparado para ouvir”?
Parte do problema, naturalmente, está na importância excessiva doentia
que atribuímos à opinião de pastores e líderes – para grande proveito
deles, mas com a nossa conivência. É como se, se seu pastor por acaso se
declarasse à favor da união entre homossexuais, você mesmo fosse
obrigado a concordar com ele – ou a se casar com ele. Como se, se seu
líder opinasse que a virgindade de Maria não deve ser entendida
literalmente, você devesse imediatamente deixar de se ajoelhar diante de
Jesus. Porque, em grande parte, estamos ligados à liderança deles de
modo tão infantil que essas reações não seriam tão absurdas quanto
parecem. Desprezamos os dogmas do catolicismo, mas apenas porque
encontramos em nossos líderes e ortodoxias substitutos à mão.
A própria noção de pastores e líderes requerem que eles sejam mais ou
menos infalíveis, e portanto pouco controversos. Além disso, e como
observa meu amigo Ivan, ninguém vai querer servir-se de um líder que não se deixe manipular;
se os líderes forem sempre sinceros e honestos serão sempre
imprevisíveis – isto é, permanecerão inúteis para fins políticos. Em
todos os casos, será menos custoso para todo mundo se eles deixarem de
dizer o que realmente pensam. Mas a contrapartida é evidente: esse pacto
de silêncio acaba apenas perpetuando a infantilidade que o impulsiona e
patrocina. Dito mais claramente: enquanto não ouvirem determinadas
opiniões, as pessoas jamais estarão preparadas para ouvi-las.
No fim das contas o que você não está preparado para ouvir talvez
seja justamente isso: que o seu líder pode estar sonegando de você não
só as convicções dele, mas as dúvidas dele – e isso quando por
vezes basta uma dúvida compartilhada para promover uma verdadeira
libertação. Por vezes a certeza de que mais desesperadamente carecemos é
a de não estarmos sozinhos em nossas incertezas.
Um pastor que conheço bem certa vez alertou uma ovelha sua a meu
respeito: “O Paulo é gente boa; só cuidado com o que ele escreve”. O
sujeito achou aquilo adorável e veio me contar. Tive de alertar eu
mesmo: “Seu pastor é muito gente boa; só cuidado com o que ele não escreve“.
O sujeito foi embora devidamente deliciado, e fiquei sozinho
matutando o que Jesus teria dito se só tivesse dito o que estaríamos
preparados para ouvir.
fonte: A Bacia das Almas
vi no Pavablog
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