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terça-feira, 9 de agosto de 2011

A vontade de Deus e os desejos não realizados

Por Paul Freston, na Ultimato

“A minha comida consiste em fazer a vontade daquele que me enviou e realizar a sua obra.”

Essa afirmação — uma das poucas janelas que temos para a vida emocional de Jesus — é feita quando os discípulos voltam da cidade trazendo alimentos. Jesus, que parece estar sob o impacto da conversa com a mulher samaritana, responde: “Uma comida para comer tenho eu, vocês não a conhecem” (Jo 4.32). Um contraste entre o que motivava os discípulos na vida e o que motivava Jesus.

É significativo que não passa pela mente dos discípulos que Jesus poderia ter feito um milagre para se alimentar. Pensam logo na hipótese de alguém ter trazido comida para ele (v. 33). Foi falta de fé por parte deles? Não. Eles sabiam que os milagres não eram feitos a qualquer hora, por um capricho. Não eram usados para satisfazer fins pessoais (a tentação de transformar pedras em pães). Se Jesus não usava seus poderes divinos para satisfazer a si mesmo, por que esperamos que ele o faça para satisfazer a nós? Jesus tinha desejos não-realizados (como a fome, nesse caso); porém, ele dizia: “Não; o propósito da minha vida não é simplesmente satisfazer os meus desejos”.

Podemos ir mais além, pois às vezes os desejos se reintroduzem sutilmente, sob a desculpa de que estamos servindo a Deus. Entretanto, Jesus, com a missão mais importante que alguém já teve, não exigiu perfeitas condições de trabalho, comida sempre na hora, colaboradores competentes, momentos de paz. Ele tolerou o cansaço, a sede, a fome, a incompetência, a incompreensão, a oposição. E tudo isso quando poderia ter usado os recursos de sua sociedade missionária celestial para remediar a situação.

Só há uma exceção a esse padrão: o curioso incidente de Mateus 17.24-27, quando Jesus aparentemente faz um milagre para pagar o imposto do templo. O incidente indica uma atitude de desprezo diante da ganância dos dirigentes da religião oficial. A “necessidade” de sustentar a elite político-religiosa não se iguala à necessidade de comer depois de uma longa caminhada.

Jesus tinha singeleza de propósito — fazer a vontade de Deus. Na cruz, pôde dizer: “Está consumado” (Jo 19.30). O que significa o fato de que a “comida” dele era fazer a vontade de Deus? Significa que ele se alimentava disso, que era a condição básica de sua sobrevivência. Se não o fizesse, definharia como quem não come. Oportunidades de servir, mesmo em momentos de cansaço e fome, eram o que lhe dava forças.

Não vivo tal versículo. Fazer a vontade de Deus só é básico para mim em certos momentos; em outros, não. Porém, para Jesus, era o tempo todo. Assim como ganhar dinheiro o é para certas pessoas — nunca perdem uma oportunidade. Ou como aproveitar a chance de uma conquista sexual. Ou como nunca deixar passar a chance de espalhar uma fofoca. Que morte: “Minha comida consiste em fazer a vontade de outra pessoa!” Isso é bem diferente de incorporar o reino de Deus como mais um interesse na vida. Exige um “jejum” de nossos próprios projetos, para que a fome do projeto de Deus apareça.

Jesus é capaz disso, porque vê a Deus como “aquele que me enviou”. Será que, quando alguém pergunta: “Quem é Deus para você?”, penso logo em responder: “É quem me enviou”? Minha relação com ele é de enviador e enviado?

Outro texto em que Jesus revela algo de sua vida interior é Lucas 12.49-50: “Eu vim para lançar fogo sobre a terra e bem quisera que já estivesse a arder. Tenho, porém, um batismo com o qual hei de ser batizado; e quanto me angustio até que o mesmo se realize!”.

Como é que Jesus, uma pessoa equilibrada e sempre disponível, poderia se angustiar? O equilíbrio cristão, porém, não é o ideal budista de impassibilidade. Não depende de “estar de bem com a vida”. Um forte senso de missão e de necessidade pode coexistir com a calma e com a disponibilidade.

“A vontade daquele que me enviou” nem sempre é algo agradável. Imaginemos Jesus dizendo essa frase no jardim do Getsêmani! A sua “comida”, naquela circunstância, devia parecer envenenada.

Será que Jesus era um “viciado em trabalho”? Não. Para ele, o trabalho não era um fim em si mesmo, mas um meio de fazer a vontade do Pai. Jesus não disse: “Minha comida consiste em me realizar por meio do trabalho”. Não tinha uma atividade febril, ditada pelas circunstâncias. Ele tinha uma missão, não uma reação.

Nosso problema é que não temos — salvo em raros momentos — uma ideia tão clara de nossa missão como Jesus tinha. Ele pôde dizer: “Está consumado”, porque a sua missão se relacionava com a cruz como clímax. E nós? Em geral, não temos consciência de um projeto tão específico como ponto culminante de nossa missão. Posso assumir um projeto, mas quem me garante que não se tornará mera obstinação? Por isso, temos de nos propor a “realizar a obra de Deus”, mas sempre com autocrítica, sabendo que a obra de Deus pode não ser exatamente o que nós queremos fazer, muito menos o que acabamos realizando.

Portanto, que tenhamos tolerância para com os projetos cristãos dos outros, modéstia quanto à nossa própria atividade e cautela no uso da frase “a vontade de Deus” para justificar as nossas decisões.

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Paul Freston, inglês naturalizado brasileiro, é professor colaborador do programa de pós-graduação em sociologia na Universidade Federal de São Carlos e professor catedrático de religião e política em contexto global na Balsillie School of International Affairs e na Wilfrid Laurier University, em Waterloo, Ontário, Canadá.

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