Por Paul Freston, na Ultimato
“A minha comida consiste em fazer a vontade daquele que me enviou e realizar a sua obra.”
Essa
afirmação — uma das poucas janelas que temos para a vida emocional de
Jesus — é feita quando os discípulos voltam da cidade trazendo
alimentos. Jesus, que parece estar sob o impacto da conversa com a
mulher samaritana, responde: “Uma comida para comer tenho eu, vocês não a
conhecem” (Jo 4.32). Um contraste entre o que motivava os discípulos na
vida e o que motivava Jesus.
É significativo que não passa pela
mente dos discípulos que Jesus poderia ter feito um milagre para se
alimentar. Pensam logo na hipótese de alguém ter trazido comida para ele
(v. 33). Foi falta de fé por parte deles? Não. Eles sabiam que os
milagres não eram feitos a qualquer hora, por um capricho. Não eram
usados para satisfazer fins pessoais (a tentação de transformar pedras
em pães). Se Jesus não usava seus poderes divinos para satisfazer a si
mesmo, por que esperamos que ele o faça para satisfazer a nós? Jesus
tinha desejos não-realizados (como a fome, nesse caso); porém, ele
dizia: “Não; o propósito da minha vida não é simplesmente satisfazer os
meus desejos”.
Podemos ir mais além, pois às vezes os desejos se
reintroduzem sutilmente, sob a desculpa de que estamos servindo a Deus.
Entretanto, Jesus, com a missão mais importante que alguém já teve, não
exigiu perfeitas condições de trabalho, comida sempre na hora,
colaboradores competentes, momentos de paz. Ele tolerou o cansaço, a
sede, a fome, a incompetência, a incompreensão, a oposição. E tudo isso
quando poderia ter usado os recursos de sua sociedade missionária
celestial para remediar a situação.
Só há uma exceção a esse
padrão: o curioso incidente de Mateus 17.24-27, quando Jesus
aparentemente faz um milagre para pagar o imposto do templo. O incidente
indica uma atitude de desprezo diante da ganância dos dirigentes da
religião oficial. A “necessidade” de sustentar a elite
político-religiosa não se iguala à necessidade de comer depois de uma
longa caminhada.
Jesus tinha singeleza de propósito — fazer a
vontade de Deus. Na cruz, pôde dizer: “Está consumado” (Jo 19.30). O que
significa o fato de que a “comida” dele era fazer a vontade de Deus?
Significa que ele se alimentava disso, que era a condição básica de sua
sobrevivência. Se não o fizesse, definharia como quem não come.
Oportunidades de servir, mesmo em momentos de cansaço e fome, eram o que
lhe dava forças.
Não vivo tal versículo. Fazer a vontade de Deus
só é básico para mim em certos momentos; em outros, não. Porém, para
Jesus, era o tempo todo. Assim como ganhar dinheiro o é para certas
pessoas — nunca perdem uma oportunidade. Ou como aproveitar a chance de
uma conquista sexual. Ou como nunca deixar passar a chance de espalhar
uma fofoca. Que morte: “Minha comida consiste em fazer a vontade de
outra pessoa!” Isso é bem diferente de incorporar o reino de Deus como
mais um interesse na vida. Exige um “jejum” de nossos próprios projetos,
para que a fome do projeto de Deus apareça.
Jesus é capaz disso,
porque vê a Deus como “aquele que me enviou”. Será que, quando alguém
pergunta: “Quem é Deus para você?”, penso logo em responder: “É quem me
enviou”? Minha relação com ele é de enviador e enviado?
Outro
texto em que Jesus revela algo de sua vida interior é Lucas 12.49-50:
“Eu vim para lançar fogo sobre a terra e bem quisera que já estivesse a
arder. Tenho, porém, um batismo com o qual hei de ser batizado; e quanto
me angustio até que o mesmo se realize!”.
Como é que Jesus, uma
pessoa equilibrada e sempre disponível, poderia se angustiar? O
equilíbrio cristão, porém, não é o ideal budista de impassibilidade. Não
depende de “estar de bem com a vida”. Um forte senso de missão e de
necessidade pode coexistir com a calma e com a disponibilidade.
“A
vontade daquele que me enviou” nem sempre é algo agradável. Imaginemos
Jesus dizendo essa frase no jardim do Getsêmani! A sua “comida”, naquela
circunstância, devia parecer envenenada.
Será que Jesus era um
“viciado em trabalho”? Não. Para ele, o trabalho não era um fim em si
mesmo, mas um meio de fazer a vontade do Pai. Jesus não disse: “Minha
comida consiste em me realizar por meio do trabalho”. Não tinha uma
atividade febril, ditada pelas circunstâncias. Ele tinha uma missão, não
uma reação.
Nosso problema é que não temos — salvo em raros
momentos — uma ideia tão clara de nossa missão como Jesus tinha. Ele
pôde dizer: “Está consumado”, porque a sua missão se relacionava com a
cruz como clímax. E nós? Em geral, não temos consciência de um projeto
tão específico como ponto culminante de nossa missão. Posso assumir um
projeto, mas quem me garante que não se tornará mera obstinação? Por
isso, temos de nos propor a “realizar a obra de Deus”, mas sempre com
autocrítica, sabendo que a obra de Deus pode não ser exatamente o que
nós queremos fazer, muito menos o que acabamos realizando.
Portanto,
que tenhamos tolerância para com os projetos cristãos dos outros,
modéstia quanto à nossa própria atividade e cautela no uso da frase “a
vontade de Deus” para justificar as nossas decisões.
__________
Paul Freston,
inglês naturalizado brasileiro, é professor colaborador do programa de
pós-graduação em sociologia na Universidade Federal de São Carlos e
professor catedrático de religião e política em contexto global na
Balsillie School of International Affairs e na Wilfrid Laurier
University, em Waterloo, Ontário, Canadá.
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