Num vôo para Recife-PE, numa das mais recentes idas para rever a família nesses muitos anos de residência em Fortaleza-CE, encontrei no avião um grupo de músicos com seus cases de instrumentos, malas e mochilas. Dentre eles, um músico cristão. Ou será que devemos chamar de… um cristão músico?
Era a banda de um cantor famoso nacional e talvez internacionalmente. Logo começamos a conversar, pois ele sentou na poltrona ao meu lado, do outro lado do corredor, e, embora não nos conhecêssemos pessoalmente, tínhamos amigos comuns e até já ouvíramos falar um do outro. Da conversa, uma experiência vivenciada por ele ficou registrada em minha mente como história a ser recontada face realidades que parecem não deixar de permear a relação desses profissionais com muitos dos cristãos que também compõem a igreja.
Era noite de festa, daquelas, tipo formatura, casamento, enfim, celebração. A primeira banda estava no final da sua parte, e ele, juntamente com os seus companheiros, assumiria o baile a partir da meia-noite. Enquanto esperava na lateral do palco, um garçom se aproximou dele e lhe ofereceu “uma cerveja”. – “Não, obrigado!” Disse ele! A música continuou, a festa continuou, e depois de algum tempo o mesmo garçom lhe retornou… “E Whisky, deseja? – Não, obrigado!” Novamente o músico respondeu. Foi quando surgiu a pergunta: “Você é evangélico?” Ele respondeu: “Sou cristão!” – “De que igreja?” perguntou o garçom. O músico, então, respondeu participar de uma denominação evangélica bem conhecida em nosso país. A partir daí, o semblante e a presteza do garçom mudaram ‘da água para o vinho’ ou “do vinho para a água’ – talvez por ser a sua mesma denominação – e ele perguntou: “Então, o que você está fazendo aqui?” De imediato, a resposta do músico foi… “Vim trabalhar.” O garçom, indignado, afirmou prontamente: “Isso não é trabalho para um cristão! Vai tocar a noite toda para os outros dançarem!”
Essa história por si só já se explica e ensina, no entanto, por ser um assunto tão recorrente nas perguntas que surgem sobre músicos, vida cristã, e suas relações com profissão e “igreja”, nos congressos e palestras de “adoração” e afins, que é melhor caminhar um pouco mais, pois certamente, infelizmente o assunto, para muitos, ainda não está bem resolvido.
Embora alguns nem acreditem, esse não é um posicionamento tão incomum em relação aos cristãos que têm por profissão a música e a exercem atuando em restaurantes, bares ou confraternizações, as mais diversas.
Talvez não seja comum um diálogo como esse, afinal, não é todo dia que um irmão garçom encontra um irmão músico, ambos no exercício das suas profissões e travam esse tipo de diálogo, embora comumente encontremos cristãos se debatendo por causa dos irmãos artistas, principalmente músicos, que exercem as suas profissões ‘na noite’, aliás, na maioria das vezes num tipo de conversa desprovida ‘da graça’ e que acontece muito mais no ambiente do local chamado “igreja” do que nos tidos como “não aconselháveis” para um cristão.
Assim, creio que vale a pena evoluirmos um pouco mais, talvez respondendo franca e responsavelmente para nós mesmos a algumas poucas perguntas:
Será que todos os cristãos músicos profissionais estão preparados para exercerem sua profissão sem se contaminarem com o mal, ou com “as coisas desse mundo”?
Conheço músicos que foram alcançados pelo evangelho, em grande parte, pelo testemunho de companheiros músicos cristãos atuando profissionalmente nos mais diversos locais, influenciando-os positivamente por meio de vidas pautadas por princípios cristãos. Também conheço músicos cristãos que se profissionalizaram e influenciaram negativamente outros músicos, assim como outras pessoas, muitas vezes até da própria igreja. Aí eu me pergunto… Mas isso não é passível de acontecer com todos nós, independente das nossas profissões? Em todas as nossas atividades da vida, e também profissionais, sempre estaremos sujeitos ao risco de tomarmos “a forma do mundo”. Precisamos estar sempre alertas, a fim de “não nos conformarmos com este mundo, mas buscando sempre renovar a nossa mente”, como aconselha Paulo, o Apóstolo, a todos nós, e não apenas aos músicos profissionais que tocam “na noite”. Afinal, o texto de Romanos 12 certamente não inicia com… “Rogo-vos, pois, ‘músicos’, que apresenteis os vossos corpos como sacrifício vivo, santo e agradável a Deus…”. Claro que não é assim!
Ah, tá! Talvez o problema esteja “na noite”, ou seja, no turno de trabalho. Mas, então, o que vamos fazer com os taxistas, os médicos, os garçons, os enfermeiros, os pilotos, os policiais, os vigilantes, e tantos outros profissionais que exercem profissões, muitas vezes no turno da noite? Se o problema está no horário de trabalho, e se queremos tratar com justiça, ou pelo menos lógica, seria, então, proibido para o pastor profissional, aquele que é sustentado financeiramente pela igreja, atuar no turno da noite? Jamais estes poderão participar de vigílias em “suas” igrejas?
Claro que não! Claro que não é assim! Talvez o que aflija os corações seja o “ambiente de trabalho” juntamente com “a aparência do mal”. Então, o que vamos fazer com os nossos cristãos advogados que convivem com um sistema judiciário injusto em tantos momentos e situações? Ou com os nossos cristãos funcionários públicos em meio à cultura de ganhar sem produzir e, muitas vezes, sem trabalhar? Ou, ainda, com os cristãos educadores físicos que atuam em tantas academias onde a ênfase maior está no culto ao corpo? Ou com tantas outras práticas certamente não condizentes com o evangelho, mas não tidas como ‘aparência do mal’, sendo o próprio mal com cara de bem. E o que dizer dos policiais, dos políticos ou de tantos outros profissionais a quem a igreja não impõe um padrão de comportamento como faz aos músicos? O que vamos fazer com todos aqueles que se não copiassem as músicas dos cristãos músicos e nem comprassem CDs e DVDs piratas talvez estivessem contribuindo para eles, músicos, estarem talvez uma noite a mais em casa com a sua família, pais, esposas, filhos e filhas?
Será que a igreja (as pessoas) está pronta a reconhecer a profissão do músico como adequada para um cristão?
Lembro da história, como tantas outras que certamente existem, de um músico profissional que se converteu ao evangelho e foi orientado a deixar de tocar onde atuava antes, para “agora trabalhar apenas para o Senhor”. Na cidade do Recife havia poucos bateristas no meio chamado evangélico, o que poderia representar uma oportunidade, tanto para ele como profissional, quanto para a igreja pelo fato de ter alguém competente acima da média da época na atividade. No entanto, a bateria ainda não era um instrumento bem aceito no meio, sobretudo das igrejas históricas. Sua saída foi passar a tocar num grupo chamado “Embaixadores de Sião”, atuando principalmente junto à igreja pentecostal da época, que vale a pena salientar, era bem diferente da dos dias atuais, sustentado na ocasião por um homem rico que bancava toda a produção, desde o micro-ônibus e equipamentos, às gravações e os salários. Felizmente para aquele músico surgiu essa rara oportunidade, ao mesmo tempo, infelizmente para a igreja era a visão e o empenho de um só homem.
Vem-me à mente também o pedido sincero ‘de oração’ de uma querida irmã, no sentido de que o genro do “seu pastor”, que é músico profissional, logo tenha condições de “deixar esse mundo” e passe a “servir ao Senhor” tocando apenas na “igreja”. Surpreendem-me os conceitos equivocados e inocentemente generalizados em nossas igrejas, muitas vezes até por cristãos antigos na carreira da fé. As idéias de que a igreja é um local e o serviço ao Senhor acontece dentro dele, sinceramente me assustam. Não necessariamente as idéias em si, mas o fato delas permearem as mentes da igreja. Novamente eu me pergunto: Mas, o que representa trabalhar para o Senhor? O que, na realidade, significa “servir ao Senhor”? E não devemos fazê-lo junto à sociedade? Ou é pra vivermos uma cultura de gueto em que só podemos viver e conviver com os que são da fé?
Ah, tá! Então, poderíamos pensar em implantar um grande ‘movimento espiritual’, que poderia até ser chamado de ‘Profissão Fidelidade’, em que todos os profissionais deveriam “deixar o mundo” (o que não significa morrer), e trabalhar, “servindo apenas ao Senhor”, ou seja, “no local chamado igreja”. Todos os prestadores de serviços, os profissionais liberais, os empreendedores, e, claro, os investidores, sendo cristãos, também deveriam estar disponíveis e atuando, empreendendo e investindo exclusivamente “na igreja”. Já imaginou um dentista ou um médico? Esses atenderiam toda a população carente chamada cristã e sem cobrar nada. Também os professores, eles só deveriam dar aulas na escola bíblica e sustentarem suas famílias a partir dessa atividade. Ah, sim! Tem também os engenheiros civis e os arquitetos, que atuariam apenas nas construções de edifícios chamados ‘templos’, os motoristas que dirigiriam levando e trazendo os ‘irmãos’ para os locais de cultos, os cozinheiros, chefes, garçons e auxiliares, que preparariam e serviriam a comunidade da fé nas suas refeições, e que tal os atletas? – Mas… ‘igreja’ é lugar de atleta?
Alguém poderia dizer: “Ah, não! Aí já estamos fugindo da essência. Igreja não é lugar para esses profissionais. Aliás, ser atleta não deve ser profissão, mas sim diversão.”
Realmente, é difícil entender algumas profissões como sendo praticadas no ambiente do local que chamamos de igreja. E na realidade, essencialmente igreja não é ambiente para profissionais, nem sequer pastores. Dentro daquilo que vivemos hoje e muitas vezes chamamos de igreja, algumas profissões jamais se encaixariam, outras, no entanto, com perfeição, a exemplo dos professores, que por sinal, mesmo com o explícito reconhecimento da fundamental importância da sua atividade, e mesmo com a base bíblica de que “merecedores de dobrados salários são os que se afadigam na palavra”, a igreja nem recrimina a sua atuação fora dos muros eclesiásticos, nem sequer cogita em remunerar dentro. Já outras atividades são mais facilmente absorvidas no âmbito dos “arraiais do povo de Deus”.
No caso dos músicos, a situação é totalmente atípica. Além de vitrines e, ao mesmo tempo, ‘vivenciadores’ dos bastidores, eles sofrem a cobrança de uma boa performance técnica, quase sempre a exigência de um “bom testemunho de vida com Deus”, muitas vezes desfrutam da excepcional experiência de abençoar a igreja num processo de ‘conexão’ através da música com a pessoa do Pai (o que perigosamente também pode se transformar em manipulação), e, por tudo isso, tornam-se fundamentais nos processos das reuniões comunitárias, ou cultos públicos e serviços, como são mais tradicionalmente chamados. (É difícil, porém não impossível, se imaginar um “culto” sem música). Numa situação similar a dos professores citados acima, os músicos são cobrados a atuarem competentemente (no sentido de estarem habilitados à função) e voluntariamente (no sentido de sem remuneração), contudo, de forma contrária aos professores e de outros cristãos em suas profissões, em muitos casos e por muitas pessoas, são constrangidos e muitas vezes impedidos de exercerem tais atividades de forma profissional junto à sociedade, assim como, absurdamente na própria comunidade. Aí, lembro da ‘agonia’ de alguns deles desejosos de “obedecer”, porém, com as contas no final do mês.
Sei que rapidamente poderão surgir as comparações com os levitas. Realmente, eles são sempre a base para o argumento de que os músicos devam se dedicar ao trabalho exclusivo no templo. Vale salientar, no entanto, que os da tribo de Levi não eram apenas músicos. Eram porteiros, vigias, abatedores de animais, cantores, instrumentistas, sacerdotes, etc. Todos eles tinham sua manutenção a partir das ofertas trazidas como expressão de adoração, o que implicava nos fatos, por exemplo, de que apenas eles podiam se alimentar da carne apresentada para o sacrifício, e, ao mesmo tempo, não possuíam bens. Das tribos de Israel, os levitas eram os únicos não possuidores de terras, e, consequentemente, os únicos a serem beneficiados com objetos e animais apresentados para os sacrifícios. Ou seja, eram mantidos integralmente.
Com base nisso, podemos, então, concluir alguns equívocos naturalmente absorvidos ao longo da história, porém, estranhos aos exemplos bíblicos no que diz respeito às práticas atuais da igreja (que surge no novo testamento). Se a base for o antigo testamento, o caso dos levitas, o músico cristão de hoje deveria ser sustentado pela igreja, tanto quanto o sacerdote (pastor profissional) ou outros profissionais envolvidos. E vale salientar que eles, músicos levitas do AT, segundo o relato bíblico, eram maduros na idade e competentes naquilo que faziam.
Além da hereditariedade, competência e sustento financeiro são características do sistema do antigo testamento para a tribo dos Levitas e que muitos tomam por base para o argumento de que os músicos devem trabalhar apenas ‘na igreja’. No entanto, as duas mesmas características compreendem aquilo que chamamos de ‘profissionalismo’ nos nossos dias. É como se a igreja buscasse usufruir da competência, porém, sem a mínima manifestação de reconhecimento através do sustento financeiro. Vale salientar que tal reconhecimento é o mínimo a ser expresso e que existem outras formas de se reconhecer o trabalho de um trabalhador.
O grande “Q” da questão é que estamos vivendo outra era. Não mais vivemos o contexto do antigo testamento. Vivemos um novo momento. Passamos a estar na presença de Deus cotidianamente, através do último e perfeito sacrifício em favor do pecado do homem. Agir realmente de acordo com os princípios e valores bíblicos significa nos atermos à Nova Aliança implantada com o sacrifício de Jesus, e não utilizarmos a Bíblia de acordo com as nossas conveniências e negando o Seu ministério. (Vale lembrar que essa tem sido uma prática constante na vida da igreja com relação a diversos temas). Nela, na Nova Aliança, Deus não habita mais em templos feitos por mãos de homens; “Sua casa”, o santo dos santos, deixou de ter acesso exclusivo pelo sumo sacerdote apenas uma vez por ano, para ser extensivo ao coração de todos os redimidos; o Espírito Santo deixou de visitar pontualmente o Seu povo, para habitar definitivamente na vida dos que crêem; o povo de Israel deixou de ser o veículo exclusivo de proclamação da grandeza de Deus aos outros povos, surgindo a Igreja com o propósito de adorar o Cristo Vivo em tudo o que faz, comungar da Sua presença em amor, e assim, proclamar a Sua maravilhosa salvação a todos, em todos os lugares, e através de todas as atividades, inclusive através das mais diversas profissões. Fomos “feitos” todos, “reino, sacerdócio real, nação santa… a fim de proclamar as virtudes daquele que nos tirou das trevas…”
Imagine, então, como a igreja poderia ser mais forte e atuante do que pensa que é, e como pode impactar o mundo, não se contaminando e nem se conformando com ele, se cada cristão assumisse a sua posição na sociedade, influenciando-a com princípios e valores cristãos, e não transferindo suas responsabilidades. Tal raciocínio pode ir desde a orientação dos filhos no caminho do evangelho às iniciativas sociais ou missionárias que tantas vezes é terceirizada para a própria instituição. Até quando pensamos em evangelizar alguém, nosso primeiro pensamento atualmente é levá-lo ao culto a fim de ouvir a pregação de um especialista, sem talvez contar que a melhor pregação é a nossa própria vida. Tal raciocínio se aplica também a como e onde exercemos as nossas profissões, se voltadas para dentro dos nossos confortáveis “arraiais do povo de Deus” ou para onde estão todos aqueles que ainda necessitam entender do amor do Pai revelado na pessoa do Filho Jesus. Certamente os músicos estão dentre todos os outros profissionais que podem ser usados por Deus nessa direção, através do cotidiano, contando ainda com o poder da arte em tantos momentos tão eficaz.
Respondendo, então, a pergunta feita, parece que a igreja só estará pronta para reconhecer a profissão do músico como apropriada para um cristão, quando entender muitas outras questões, algumas aqui abordadas, e que revelam a possibilidade do problema não está propriamente nas pessoas dos músicos.
Na nossa mente permeada por valores históricos que, sem dúvida, foram absorvidos pela sociedade em geral, o que inclui a igreja, a idéia de profissionalismo está associada à capacidade de se desenvolver uma determinada atividade e a sua conseqüente remuneração. Mas parece que as únicas atividades profissionais realmente reconhecidas pelas instituições eclesiásticas, ao longo dos anos, são o pastor e o zelador. Mais recentemente, com a proliferação empresarial dos processos por parte da igreja, diferentes profissionais tem sido contratados, e até músicos, considerando-se um verdadeiro segmento de atividade que necessita de planejamento, estratégias, alvos e metas, como numa verdadeira empresa. E aí sim, a igreja perdeu um pouco mais da sua essência. Por outro lado, cada vez mais cristãos músicos tem rompido a barreira da adversidade e passado a atuar profissionalmente.
Mesmo assim, pelo que se vê, ou melhor, se lê, o assunto ainda tem “muitos panos pras mangas”. Infelizmente para alguns, é melhor aceitar a dose de whisky, a fim de esquecer. Para outros, eu gostaria de atuar como garçom e oferecer a possibilidade de embriagar-se com o Espírito, em Quem não há variação ou sombra de mudança.
Augusto Guedes é um dos fundadores e Diretor Executivo do Instituto Ser Adorador, pastor, líder de adoração, empresário no ramo de imóveis na cidade de Fortaleza-CE, mas prefere se apresentar como alguém que continua encantado com o chamado de simplesmente seguir a Jesus.
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Fonte: Cristianismo Criativo. - [via Púlpito Cristão]
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