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"Meus filhos terão computadores, sim, mas antes terão livros. Sem livros, sem leitura, os nossos filhos serão incapazes de escrever - inclusive a sua própria história." Bill Gates

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segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Coma os morangos



Rubem Alves: “Jovem não fala retrato, fala foto. Tenho que escrever rápido porque não sei quando vou partir”
Marília César [via Valor Econômico], capturado no Pavablog.
“Tempus fugit”. Portanto, “carpe diem”. O tempo voa. Então, colhamos o dia. Vivamos o momento, pois envelhecer é só canseira e enfado. É como a luz do crepúsculo, que vai se transformando rápida e melancolicamente, até o mergulho final na escuridão da noite. O pior da velhice, entretanto, é que as pessoas passam a nos tratar por diminutivos, como fazem com as crianças. “Você está doentinho?” “Quer um docinho?” É humilhante.
Essas imagens sobre o envelhecer são descritas pelo escritor, psicanalista e teólogo Rubem Alves em seu livro “Pimentas – Para Provocar Um Incêndio Não É Preciso Fogo” (Planeta), no qual trata dessa “fase crepuscular” da vida com poesia, ironia e melancolia. São 74 fragmentos sobre temas variados — educação, política, poesia, céu e inferno e passagens curiosas do Antigo Testamento — de um autor que completou 79 anos em setembro.
Ele soa um pouco triste ao telefone, falando da varanda de seu apartamento, na cidade de Campinas. “O tempo me foge. Não tenho mais tempo para escrever um romance. Não tenho mais tempo para escrever uma coisa com começo, meio e fim. ‘Pimentas’ é uma coleção de fragmentos – sou um retratista. Outra palavra que revela idade.”
Leia abaixo a entrevista na íntegra.
Valor: O senhor conta no livro um episódio engraçado sobre um “flerte” no metrô que não terminou como gostaria. Como foi isso?
Rubem Alves: Eu descobri que estava velho numa situação surpreendente. Isso foi há vinte anos. Estava em São Paulo, peguei o metrô, estava lotado. Eu era jovem, pernas fortes, segurei no balaústre e comecei a olhar para os rostos das pessoas. Rostos contam histórias. Olhando para as pessoas você pode imaginar contos, muitas coisas. Eu estava ali, imaginando as crônicas que poderia escrever, quando vi uma moça me olhando com mansidão, quase com ternura. Eu fiquei comovido com aquele olhar. Eu olhava para ela, ela olhava para mim. Percebi que ela devia estar comovida com a minha presença. Houve um momento de suspensão romântica. Pensei: manchete do meu conto — ‘Rubem Alves encontra inesperadamente no metrô o grande amor de sua vida’. Comecei a ter fantasias. Foi nesse momento que ela me fez um gesto de carinho. Ela se levantou e me ofereceu o lugar. Quando ela fez isso, é como se dissesse para mim: o senhor (certamente ela estava pensando em senhor, não em você) não pertence ao meu mundo. O senhor deve ter pernas bambas. Naquele instante eu percebi que estava perto dela, mas estava muito longe dela. Ela era uma moça e eu era um velho. A partir dali o tema da velhice começou a ser importante para mim. Comecei a prestar atenção no que acontece com as pessoas quando elas se descobrem velhas. Fiz então uma série de observações sobre isso.
Valor: Cite algumas.
Alves: A gente é velho quando as moças nos oferecem lugar no metrô. A gente é velho quando uma moça lhe dá o braço para ajudar a subir a escada e você tem que aceitar a delicadeza. Eu agora tenho que ter cuidado, tenho que olhar pro chão e medir os meus passos. Coisas que eram naturais – andar, subir escada, descer escada – coisas simples passam a não ser mais.
Valor: Mas o senhor não está se concentrando muito no aspecto físico do envelhecimento?Alves: É, mas o olhar das pessoas também muda.
Valor: O que muda nesse olhar?
Alves: Você deixa de ser o homem másculo, viril, objeto de contemplação das jovens, e passa a ser um ser crepuscular. O que é o crepúsculo? Nele, o tempo passa muito mais rápido. Neste instante, eu estou sentado aqui na minha varanda, o céu está muito azul, o tempo está parado. Assim é a juventude — na juventude, o tempo para. Mas quando chega o crepúsculo, começa a haver transformações rápidas no céu. Rapidamente, as cores vão se alterando, o azul fica verde, o verde fica amarelo, amarelo fica abóbora, abóbora fica vermelho, o sol está se pondo, tudo fica roxo e logo o céu está mergulhado na escuridão. A percepção é que a hora de partir está chegando. O crepúsculo é essa consciência de que o tempo passa rapidamente, a vida passa rapidamente.
Valor: O senhor cita numa das crônicas o livro de Eclesiastes, quando fala do envelhecer como os anos nos quais o homem não encontra mais prazer nenhum.
Alves: 
Sim, a gente descobre que o tempo é curto. Aqui na minha varanda tem duas frases que mandei gravar em madeira – Tempus Fugit. Se o tempo foge, eu preciso correr. Então mandei gravar Carpe Diem, colha o dia. Viva o momento. Mas isso dá uma tristeza na gente.
Valor: Envelhecer também não é sobre perder a capacidade de sonhar? A sua escrita, contudo, revela uma pessoa que não perdeu essa capacidade. Que sonhos o senhor tem cultivado?
Alves: Tem uma frase de Fernando Pessoa que diz assim – Deus quer, o homem sonha, a obra nasce. Talvez essa pressa em produzir tenha a ver com essa sensação de que os dias passam muito rapidamente . Comecei a ler esses dias um livro enorme de John dos Passos, um livro monumental. Eu não tenho mais tempo para escrever livros enormes. O tempo me foge. Não tenho mais tempo para escrever um romance. Não tenho mais tempo para escrever uma coisa com começo, meio e fim. “Pimentas” é uma coleção de fragmentos – sou um retratista. Olha aí, eu já disse uma palavra que revela a idade. Jovem não fala retrato, fala foto. Eu tenho que escrever rápido porque não sei quando é que vou partir.
Valor: O senhor parece cansado.
Alves: Uma das coisas da velhice é o cansaço. Dá uma canseira de viver, sabe? Deus quer, o homem sonha, a obra nasce. Mas a gente não tem mais disposição para fazer a obra nascer. A gente tem que agarrar o que resta. Gosto de contar a história de um homem que ia caminhando pela floresta, a mata estava escura. De repente, ele ouve o rugido de um leão e sai correndo, mas como está escuro ele cai num precipício. Ele se agarra a um galho preso no abismo, olha para cima, o leão, para baixo, o abismo; então ele nota que bem à sua frente está brotando um galho com uma fruta vermelha. É um morango. Ele estende o braço e come o morango e se delicia. As pessoas perguntam – qual o final da história? O homem caiu? E eu respondo, não tem final, é só isso mesmo. Você não entendeu? Quem está pendurado sobre o abismo sou eu, é você , todos estamos sobre o abismo, portanto, o que nos resta a fazer é comer os morangos.

Valor: E quais são os morangos que o senhor tem apreciado atualmente?
Alves: São coisas pequenas, simples. Ontem, por exemplo, ouvi pela internet a Pour Elise, de Beethoven, tocada num órgão feito de taças de cristal, um som inesperado, que vai surgindo aos poucos. Qual é a importância disso? Nenhuma! Mas me feliz naquele momento.
Valor: Na realidade, não deveríamos viver sempre desse jeito, ter essa capacidade de tirar alegria de coisas pequenas?
Alves: O Guimarães Rosa tem uma frase verdadeira: alegria, só em raros momentos de distração. Agora, a felicidade aqui da minha varanda é ver os ipês, que teimam em florescer. Para florescer eles têm que perder todas as folhas. Árvore pelada, na cabeça da gente, está se preparando para morrer. Mas em vez de morrer o que os ipês fazem? Eles florescem. No livro conto a história de uma escola que organizou uma exposição de desenhos dos alunos sobre coisas que escrevi. A professora perguntou para as crianças: quem é Rubem Alves? E uma menina respondeu: Rubem Alves é um homem que gosta de ipês amarelos. Isso é muito comovente.
Valor: Algumas crônicas falam sobre educação, de uma maneira crítica, e da proximidade entre velhos e crianças. “As crianças nos salvam de um envelhecimento triste.”
Alves: Os avós estão mais próximos dos netos que os pais. Os pais ficam preocupados em colocar o filho em escola forte, para passar no maldito vestibular. É uma perda de tempo isso, as escolas não ensinam a sabedoria da vida, e os avós não têm tanto essa preocupação com desempenho. A alma dos velhos é muito parecida com a alma das crianças.
Valor: Nos fragmentos, o senhor fala também sobre céu e inferno. Uma frase que me chamou a atenção é: “É inimaginável que um Deus de amor castigue com sofrimentos eternos pecados que foram cometidos no tempo”. Qual a sua ideia de inferno?
Alves: São Tomás de Aquino tem uma frase horrenda que diz que “Deus e os salvos contemplam, dos céus, os condenados, dos estertores da sua agonia, para que sua alegria se cumpra”. Quem foi que criou o inferno? Não foi o diabo. Se Deus é onipotente, então o inferno é produto da vontade de Deus, Eu já acreditei nisso, sabe? Já perdi o sono por causa disso. Quem tem muitas vinganças a realizar faz mosaicos de infernos, diz o [filósofo Gaston] Bachelard. Deus não tem vingança nenhuma a realizar. Se é que Deus existe. Deus não pune nada, vai punir o quê? Um pobre mortal que foi enrolado pelas artimanhas da estupidez humana? Acreditar que o universo tem essa dimensão de vingança? Deus não está se vingando de seus desafetos. Além disso, os pecados humanos são cometidos no tempo — por uma pessoa que vai viver setenta, oitenta anos. E o inferno é por toda a eternidade, é para sempre. Se eu fosse Deus mandaria um castigo para todas as pessoas que pensaram essas coisas horríveis de mim. O mesmo castigo que aconteceu entre o povo de Israel e os filisteus lá no Velho Testamento. Ele castigou com uma praga terrível — todos os filisteus ficaram tomados de hemorróidas. Numa região que não tinha nem um riachinho onde pudessem se refrescar.
Valor: O senhor cita esse e outros episódios muito esquisitos do Antigo Testamento. Um deles é sobre o profeta Eliseu, amigo de Elias.
Alves: O que tem de maluquice no Velho Testamento, de maldade… O profeta Eliseu era discípulo de Elias. Eliseu era vaidoso e tinha muita raiva por ser careca. Mas ele era muito poderoso. Um dia, Eliseu estava caminhando pela estrada e vinham em sua direção 42 crianças, que começaram a rir dele. Sabe o que ele fez? Ele invocou o poder de Jeová, que fez sair do mato duas ursas que devoraram as crianças. E o profeta, sem se comover com isso, simplesmente continuou a sua caminhada. Não fez nada para defendê-las. Tá lá na Bíblia.
Valor: É difícil convencer as pessoas que o Deus do Antigo Testamento é o mesmo do Novo Testamento?Alves: Ah, eu não tento mais convencer ninguém de nada. As pessoas acreditam no que querem acreditar. As mudanças vêm de dentro, quando alguma coisa começa a operar dentro da gente e a gente começa a perceber os absurdos. Tem que separar o trigo do joio. Na Bíblia tem coisas lindas – o Senhor é meu pastor, nada me faltará, conduz-me por águas tranquilas.. Ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte não temerei mal algum porque tu estás comigo…
Valor: Pura poesia.
Alves: Poesia. Veja o que aconteceu bem agora. Aqui na minha varanda, acabo de ouvir um barulho. Olhei e vi que tinha entrado uma cigarra pela janela. Você sabe que as cigarras são seres subterrâneos, elas vivem nas raízes das árvores. Elas não veem nada. Mas há um momento em que alguma coisa diz para esses seres subterrâneos: cigarra, está na hora de se transformar num ser alado. Então elas saem da terra, sobem o tronco das árvores, tiram a casca dura que as envolve e ganham asas. Daí elas cantam, cantam, cantam. Cantam para quê? Para celebrar o amor, para chamar os machos. Depois de realizar o amor, elas esperam a morte.
Valor: Por que razão o senhor terminou um livro tão poético com um assunto tão árido quanto a diabetes?
Alves: Para chamar a atenção dos diabéticos para o fato de que eles e eu estamos pendurados sobre o abismo e vai chegar a nossa hora. E por isso a gente precisa tomar cuidado, a menos que você queira morrer. Para dizer às pessoas que vivam bem. Cuidem da vida, não vão comer bombom, porque bombom é bom, mas melhor é ficar vivo.

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