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No início de 1990, fui incluído na organização da Aliança Evangélica Brasileira (AEVB). As reuniões aconteceram em Teresópolis. O encontro objetivava esboçar o perfil da instituição que representaria um segmento dos evangélicos. Confesso não lembrar nada do planejamento. Apenas os momentos de oração me marcaram. As devocionais lideradas pelo Osmar Ludovico ficaram comigo. Nos três dias do encontro, por cerca de uma hora, Osmar nos falou e conduziu em exercícios de oração contemplativa. Também nos dedicamos à Lectio Divina – uma leitura meditativa da Bíblia. A reunião administrativa minguou aos meus olhos. Os bons momentos em meditação permaneceram.
Enquanto orávamos, aconteceu um quebrantamento. Compungidos, descemos de quaisquer escadas ou patamares que cargos eclesiásticos nos tinham colocado. Pretensões se esvaziaram nos corações. Um peso sagrado tomou conta do ambiente. Fui às lágrimas. Não restou nenhuma dúvida, Deus nos visitava. Seu Espírito nos comovia. Como eu vinha de uma tradição pentecostal, fiquei sem chão. Eu não tinha a menor ideia de que existissem exercícios espirituais como aqueles.
A prática de orar em silêncio, de aquietar a alma para meditar, me deixou boquiaberto. Eu estava viciado em preces barulhentas. Acreditava que Deus gosta de decibeis. Devo confessar: eu vinha insuflando auditórios a um frenesi religioso; com a clara intenção de produzir êxtase. Eu me valia das técnicas que outros pastores usavam para mostrar, categoricamente, como eu era capaz de fazerDeus operar.
O Osmar Ludovico me tomou pela mão e, delicadamente, ajudou a sair dessa mentira. Com ele atravessava um novo e fascinante portal. Não mais subi escada. Aprendi tão somente a difícil arte do esvaziamento – a kenosis. O Osmar, dono de uma voz suave, pronuncia o nome de Deus com extrema reverência. E naquela reunião institucional, sem perceber direito, deixei-me conduzir por essa delicadeza a um novo tempo.
Desci a cidade montanhosa e passei a ansiar por uma espiritualidade marcada pelo afeto. Abandonei o esforço de transformar as minhas orações em técnica. Acordei para o absurdo da teologia que pretende colocar Deus em movimento. Destruí o balcão que edificara com a intenção de oferecê-lo aos caprichos humanos.
Reaprendi a orar. Hoje desejo inspirar Deus como ausência, como saudade. Assim como Rubem Alves, construo altares à beira de um abismo escuro e silencioso. E os construo com poesia e música. Repito o Salmo: Aquiete-se e preste atenção… [46.10]. Deus não mais é objeto, coisificado ou personificado, do meu pensamento. Eu o degusto: Provai e vede que Deus é gostoso. Ele é ausência, mas permeia tudo. O mundo está cheio da sua glória. Nada espero dele como intervencionista onipotente. Dele, aguardo a percepção do belo, a intuição do justo, a sensibilidade do frágil. Sem muito barulho, minha prece ambiciona colocar a alma em estado de quietude – numa quietude muito semelhante à do sumo sacerdote quando entrava no Santo dos Santos. Infelizmente, cultos e missas se tornaram espaços de agitação. O ritmo alucinante das músicas e danças nas nova liturgias não seriam fugas? Alvoroço evita o confronto com a interioridade. Quanto mais distantes de nós mesmos mais distantes de Deus. O profundo significado do ensino de Jesus sobre orar com o quarto fechado, em secreto, agora tem sentido.
Parei de orar por intervenções emergenciais. Não quero mais nada de Deus para mim. Minha oração não invoca a presença de um super-abade displicente. Não vejo sentido em implorar ao Deus que se revelou como amor que se importe com um mundo em agonia. Algumas orações o agridem, tenho certeza. Tais preces só tentam mostrar a benevolência acima da perfeição de quem ora. Várias intercessões, que se ouvem de lábios piedosos, só escancaram a soberba que a religião produz. Parece até que o Deus lá-de-cima ou lá-de-fora não vinha dando a mínima. E que os grotões miseráveis do mundo seriam resolvidos, caso ele fosse convencido a agir com compaixão.
O mundo sofre. Crianças gemem e morrem. Diante dos horrores da história, abandonei a pretensão de ser abençoado. Qualquer prece, com um mínimo de senso ético, deve considerar os mais sofredores. Quem se atreveria a furar a fila da bênção onde esperam africanos exilados e haitianos sem-teto? Um Deus que dispensa bênçãos, prioritariamente, sobre quem tem olhos azuis não merece a atenção de ninguém. Repetir que ele é uma divindade irada, sempre pronta a castigar, não mete medo, apenas aversão. Se existe um Deus que na hora de distribuir maldições começa pelos mais miseráveis, ele deve ser tratado como um demônio. Não desejo continuar com uma fé que espera milagre de um Deus tribal. A divindade que fazia chover apenas no quintal dos seus queridos, não faz sentido para mim. A noção primitiva de um Deus que afugenta gafanhotos quando vê obediência e que destrói plantação e causa fome diante do erro, não me seduz. Benção e maldição retributivas não condizem com o amor gratuito de Deus em Jesus. Deus jamais se valeria do papel do bedel indignado que abandona bilhões à míngua.
Desde aquela iniciação com o Osmar Ludovico, reaprendi a ler a Bíblia. Já não me valho das ferramentas frias da exegese para entender o texto. Por anos, eu me contentei com a gramática teológica; pavimentava a estrada da fé em cima do cascalho da argumentação. Mudei. Passei a meditar nas Escrituras com o coração. Desisti da pretensão de usar a Bíblia para chegar à verdade última, conclusiva, absoluta. Dissecar textos para produzir certeza doutrinária gera empáfia. Minha nova lente de leitura foi o amor. Dei um passo além da fria dogmática e percebi o recado de Deus nas entrelinhas. Sem o rigor da razão – elas me serviam de venda – não só pude me sentir acolhido, querido, apreciado, mas notar o quanto homens e mulheres, sem distinção religiosa, são dignos e amados. Análises sintáticas nunca desabrocham a poesia do Espírito. A letra mata e o Espírito vivifica. Depois de ver a Bíblia assim, convivo com o anelo de perceber o imperceptível e de alcançar o que os olhos naturais não captam. Só consigo imaginar Deus como presença instigadora do bem, entranhado no anseio de justiça e pedra angular do amor.
Despeço-me do culto espetáculo. Não quero estar em ambientes frenéticos. Anseio por reuniões que celebrem a graça sem paranóia, sem alguém tentando infundir culpa. Quero participar de comunidades leves, sem a afetação do glamour do mundo; uma igreja onde os sorrisos sejam gratos e os abraços, sinceros. O caminhar de Jesus não combina com espaços espetaculosos. Os valores do Reino prescindem dos holofotes.
Muito obrigado, Osmar. Naqueles dias edifiquei um altar e com ele, o desafio de vivenciar a fé em amor.
Soli Deo Gloria
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