É a ideologia dominante do nosso tempo: a convicção arraigada de que mereço tratamento especial, por ser quem sou. Vamos chamar de Merecismo. Está acima das divisões de classe, gênero, e cor de pele. Das fronteiras nacionais e ideológicas. Está nas nossas atitudes mais cotidianas, nas tomadas de posição ruidosas, nas demandas justas e nas ambições despropositadas.
É a madame estacionando em fila dupla e o ciclista nem aí de congestionar o trânsito. É a família feliz levando o cachorrinho de estimação para a praia. O churrasco pantagruélico na calçada, sertanejo no volume máximo, a porta aberta. É a moça que sonha com a barriga tanquinho enquanto come só mais um chocolatinho.
Está na pauta política da nação. No político preso que merece tratamento diferente dos outros presos, e nos políticos soltos que se indignam quando questionados por seus atos. Está nas manifestações de massa. O Brasil quer mais! Mas não quer pagar por mais, lutar por mais, eleger quem faça mais. Não queremos propor, articular, fiscalizar nem punir. Queremos tudo do bom e do melhor – escola, hospital, segurança. Ar limpo. Comida sem veneno. Natureza intocada. Comprar tudo super barato, mas pagando todos os impostos, e remunerando decentemente quem os fabricou. É o mínimo a exigir. Porque merecemos. E já! Mas não nos faça correr atrás.
Vivemos cada vez mais bradando nossos direitos. Demonstramos a paixão pelos nossos umbigos. Nos entretetemos em delírio autobiográfico, que agora produzimos aos turbilhões, e compartilhamos goela abaixo dos amigos. O que importa não é a vida, é o registro da minha vida, aperfeiçoada pelo software da moda, postada em todos os lugares, para que eu possa receber os aplausos que tanto mereço.
A evolução fez de nós animais que têm como valor máximo a própria sobrevivência e prosperidade. As últimas décadas, e principalmente os últimos anos, nos catapultaram a um nível de solipsismo sem precedentes. A publicidade decreta que o consumo nos define. A educação garante desde o berço que cada um de nós é único, especial, precioso. As novas possibilidades de customização da manufatura enganam. A personalização dos produtos e serviços hipnotiza. A revolução digital turbina nossa convicção – o universo existe para me servir.
A internet móvel é um passo além. Cada smartphone carrega um mix inteiramente pessoal de aplicativos, músicas, fotos, mapas. Tudo à nossa volta parece dizer: o mundo se adapta a você. O centro do mundo é você. Você merece. Você merece mais. Você tem todo direito de fazer o que quer, como quer, dizer o que quer, não ouvir o que não quer. Quanto mais jovem, maior a convicção da excepcionalidade.
O Merecismo é endêmico entre os jovens das classes mais abonadas. Alguns, militantes com câmeras na mão, esse ano decidiram decretar a morte do jornalismo e se autoproclamar o futuro da mídia. É segunda natureza para as crianças. São o foco absoluto das famílias, prioridade de investimentos e atenção. A música jovem, como sempre, conta a história. Em 2013 ecoaram alto as trilhas sonoras do Merecismo – mereço a mulherada porque tenho um Camaro Amarelo; mereço as novinhas; mereço porque sou poderosa; esse cara sou eu. É o DNA da música que dominou 2013, o funk ostentação.
O Merecismo implica na liberdade absoluta de criticar os outros e na rejeição a qualquer tipo de crítica. O exemplo perfeito foi o movimento Procure Saber. Os mais famosos músicos do Brasil lutaram pela censura prévia a biografias – mas só às suas próprias biografias. Até Caetano Veloso, que dita regras sobre tudo e todos, o tempo todo.
O Merecismo é a única coisa em que a elite acredita. No passado, eram nobres e reis pela vontade divina. Agora a palavra é meritocracia – “cheguei a ter este conjunto de privilégios porque me esforcei, fiz acontecer”. Mesmo que seja só o herdeiro de uma fortuna, o protegido de um deputado, o parente que cavou uma boquinha, uma alpinista social, uma celebridade qualquer. Nossas tradições escravagista, coronelista e patrimonialista fazem do Brasil o paraíso dos merecistas. O onipresente jeitinho virou o único jeito.
E o Merecismo é também a única ideologia que resta aos escombros da esquerda tradicional, transmutada em Política de Minorias, autovitimizante, inócua, diletância de radicais do Facebook. A única diferença da postura da elite é o pseudo-coletivismo – é “mereço porque o grupo de que faço parte merece”, e não porque “eu fiz por merecer”.
Somos todos assim? Mais e mais. O que fazer? Reconhecer o triunfo do Merecismo, na sociedade e em mim mesmo. O Merecismo é fruto da liberdade, da pujança, da inovação – escravos sabem que não têm direito a nada. Quero acreditar que os problemas da liberdade se resolvem com mais liberdade, não menos. Com grande liberdade vem grande poder, e grande responsabilidade. A primeira é perceber que não há direito que não tenha sido conquistado, e cada um tem que ser defendido com unhas e dentes.
Enquanto não vira o ano, lembro de Os Imperdoáveis. O velho pistoleiro vivido por Clint Eastwood, em choque com o futuro, explica vida e morte para seu companheiro novato. O garoto matou à queima-roupa pela primeira vez. Em choque, convicto de que merece perdão, procura uma justificativa para o seu ato: “bem, o cara merecia morrer.” Clint enterra a desculpa: “merecer não tem nada a ver com nada.”
É. Mas o Merecismo veio para ficar.
Nenhum comentário:
Postar um comentário