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"Meus filhos terão computadores, sim, mas antes terão livros. Sem livros, sem leitura, os nossos filhos serão incapazes de escrever - inclusive a sua própria história." Bill Gates

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terça-feira, 21 de maio de 2013

Felicidade complexa

imagem: Internet


Ricardo Gondim, no seu site
Jean Paul Sartre acertou ao afirmar que o inferno é o outro? Seria possível, mesmo como abstração, alcançar uma placidez absoluta sem a relação Eu-Tu?  ”As pessoas me atrapalham” pode ser uma frase ao mesmo tempo verdadeira e sem sentido. Pessoas são, sim, complicadas. Porém, a construção de nosso verdadeiro self só acontece na comunhão.
Porco-espinho serve como metáfora. No frio eles precisam se esquentar; só não podem se aproximar demais. Eles se espinham. Por saber que os humanos, podem se ferir, o evangelho coloca o amor horizontal, ao próximo, como eixo; e precedendo o amor vertical, a Deus. Jesus afirmou: “eu não chamo vocês de servos, mas de amigos”. Para além de uma atenção caridosa, Jesus propõe uma relação em que defeitos, pecados e tropeços não têm força para afastar uns dos outros. Mesmo sabendo que essa proximidade o vulnerabilizaria à negação, traição e morte.
No paradoxo de ferir e amar, a espiritualidade evangélica se mantém, essencialmente, comunitária. Paul Tillich afirmou que comunhão é participação no outro eu completamente centrado e completamente individual. Neste sentido comunhão não é algo que um indivíduo pudesse ter ou não. Participação é essencial para o indivíduo, e não acidental. Nenhum indivíduo existe sem participação. Nenhum ser pessoal existe sem ser comunitário.
Albert Camus escreveu Calígula para o teatroNo drama, o imperador romano, torturado por uma angústia profunda, esperneia. Ele é incapaz de alcançar a felicidade. Nota que a satisfação prometida pelo poder, riqueza e prazer, não chega até ele. O imperador intui, inclusive, que seu drama é universal: raras pessoas se percebem felizes no final da vida. A maioria, independente de serem reis ou escravos, olha para trás e sente que nunca experimentou o contentamento pleno. A poesia de Álvaro de Campos avisa: Temos todos duas vidas:/ A verdadeira, que é a que sonhamos na infância,/ E que continuamos sonhando, adultos num substrato de névoa;/ A falsa, que é a que vivemos em convivência com outros,/ Que é a prática, a útil,/ Aquela em que acabam por nos meter num caixão.
Camus mexe com uma ansiedade comum: Por que o alvo de ser feliz se distancia tanto? Por que a estrada que leva ao nirvana nunca deixa de ser íngreme? Calígula faz uma observação irretocável:as pessoas não atingem a meta porque se distraem no caminho; não se estruturam e não perseguem a felicidade de forma consistente. Camus constrói então sua personagem como figura de todos os que se consideram revestidos de poderes ilimitados – a ânsia de encarnar a felicidade é onipotente e universal. Antes da jornada que o levará ao paraíso terrestre, Calígula se convence do dever de conquistar a si mesmo.
Conquista que o proíbe de distrações. Ele acorda: as pessoas são o seu obstáculo. Elas mais que qualquer incidente têm força de solapar o foco do imperador entrar no Paraíso. Assim Calígula passa a aceitar que, para manter a concentração, deve anular seus afetos. Seus sentimentos passam a ser considerados danosos. Envolver-se com gente bloqueia sua busca da plenitude. Para ele, relacionar-se carinhosamente, atrapalha. Amar distrai. E conclui: o próximo merece ser tratado como empecilho.
O monarca não só acredita, mas passa a viver um alheamento auto imposto. Deseja a satisfação plena e para isso endurece o coração. Assim as pessoas com seus problemas se transformam em estorvo. Calígula rompe com sentimentos. Para ser feliz, abandona a busca da justiça, da amizade e do amor. Descarta o que poderia ajudá-lo em sua demanda de chegar à felicidade como valor absoluto. 

Não há como negar: a possibilidade de ser feliz se problematiza no convívio social. Pessoas inadequadas, dever ético, resistência ao mal complicam qualquer anseio de placidez. Contudo, blindar-se ao clamor do miserável, à sorte do excluído, às imperfeições humanas, acaba roubando a humanidade.  Só na convivência se sente o leve toque da tranquilidade. Só no desafio da amizade se desenvolve auto estima. Calígula perde a alma ao se trancar. Ele não quer sofrer, mas, no processo, morre. Entre a dor e desfigurar-se, desfigura-se. Entre bestializar-se e ver a felicidade distante, bestializa-se. A indiferença o decompõe. Calígula, o monstro, se sobrepõe ao humano.
Outra parábola com um rei também serve. Conta-se que um príncipe jovem, depois de entronizado, decidiu passear pelos arredores do reino. Ao retornar ao palácio, ordenou o ajudante de ordens que removesse os pobres para bem longe com a seguinte lógica: Sou piedoso demais; não consigo ver tanta gente sofrendo todo dia, por isso mande-os para os confins do meu reino.
Se o próximo tem enorme potencial de estragar a vida, solidão e inferno são sinônimos. Beco sem saída. Contudo, melhor o calor da pele, com todos os problemas, ao frio do abandono. No mandamento de amar ao próximo como a si mesmo permanece o único aceno de felicidade concebível – embora trabalhoso e custoso.
Soli Deo Gloria

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