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"Meus filhos terão computadores, sim, mas antes terão livros. Sem livros, sem leitura, os nossos filhos serão incapazes de escrever - inclusive a sua própria história." Bill Gates

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terça-feira, 14 de maio de 2013

Quem é o desafeto do Pr. Marcos Pereira

Título original: Robin Hood do morro

Criador da ONG AfroReggae, José Junior emprega ex-traficantes, capta R$ 20 milhões por ano, anda de Land Rover, viaja de executiva e é amigo de celebridades e políticos. “Isso, sim, é ter poder”

por Ronaldo França, Revista Alfa
A sala de José Junior, criador da ONG AfroReggae, tem uma vista espetacular para a Baía de Guanabara. Nas prateleiras, arrumadas com zelo, objetos que contam a história da organização dividem o espaço com biografias. Madonna, Ricky Martin e Roberto Carlos estão acompanhados de Che Guevara, Roberto Marinho, Pelé e Nelson Mandela. Shiva, divindade do hinduísmo, é representado por um pôster e duas imagens em metal. Junior está refestelado no sofá de alvenaria e almofadas brancas. As pernas esticadas sobre o sofá, cruzadas, realçam a sandália de couro bege claro da Osklen, que compõe o visual despojado com a calça da mesma marca, desfiada nos joelhos, e camisa da Reserva. Todos estavam mobilizados porque, no dia seguinte, o ex-líder do tráfico do morro da Mangueira sairia da cadeia para o regime semiaberto. Depois de cumprir 21 anos de uma pena total de 43 por tráfico e formação de quadrilha, Tuchinha (apelido de Francisco Paulo Testas Monteiro) começaria a trabalhar no AfroReggae.
A ONG, criada há 18 anos, incrementou sua atuação dando oportunidades aos que querem deixar o crime. Pelo menos três dezenas de antigos bandidos dão expediente ali. “O AfroReggae tem uma energia especial. Não tem nada de religião aqui, mas rola uma energia”, diz Junior. “Essa é uma ONG que nasceu da morte. O AfroReggae dá vida, mas é feito de morte.” Os funcionários olham atentamente para mim, dando a impressão de que querem avaliar o efeito da frase em mais um novato. “O Elias Maluco (chefão condenado a 28 anos e meio pelo assassinato do jornalista Tim Lopes, em junho de 2002) é meu amigo pra c… Gosto dele. E te digo mais: não foi ele quem matou o Tim”, afirma. Sua expressão corporal é peculiar. Os anos de treinamento de boxe numa academia lúgubre, na Lapa, lhe deram uma base firme para o corpo de 1,77 metro de altura. Junior pinta rapidamente um quadro controvertido, arriscado, que compõe a biografia do menino pobre, revoltado, profundo conhecedor do bas-fonds, que erigiu um dos mais bem-sucedidos projetos sociais brasileiros.
O AfroReggae tem cerca de 300 funcionários e coordena entre 50 e 60 projetos. Os grupos artísticos, formados por jovens carentes, se dividem em oito bandas musicais, um bloco de carnaval, duas trupes de circo e um grupo de teatro. Há também um programa de TV exibido semanalmente num canal a cabo. Entre as ações de maior visibilidade está o Desafio da Paz, em parceria com o governo do estado do Rio, uma corrida realizada em áreas retomadas dos traficantes. Graças a essas iniciativas, mais a visão de marketing privilegiada de José Junior, o AfroReggae é um sucesso. Em fevereiro, houve a 12ª edição do Prêmio Orilaxé, que contempla as principais iniciativas “transformadoras”. A festa, comandada por Roberto Talma, diretor da TV Globo, foi uma demonstração de prestígio. Na plateia, jornalistas famosos. No palco, o elenco da novela das 9 se revezava na apresentação dos ganhadores. O tema era diversidade sexual.
José Pereira de Oliveira Junior, 43 anos, é filho de pai taxista e mãe assistente de enfermagem. Criado em bairros violentos, ele organizava bailes funk até criar um jornal, embrião da ONG. Sua atuação se tornou mais intensa a partir de 1993, quando houve a chacina na favela de Vigário Geral, em que 21 moradores foram assassinados pela polícia. Eram os primeiros passos da instituição. Sua ONG captou em 2011, segundo ele, em torno de 20 milhões de reais. O número, porém, não é preciso. Junior liga para o contador: “Alô, faaaala, quanto é que vai fechar nossa captação agora em 2011, com tudo?”. A resposta não agrada. “Não pode ser, tá maluco? É muito mais do que isso.” Ele usa as palavras com destreza, ao som da típica melodia da malandragem carioca. Tem alguns truques na manga. O mais frequente é aquele em que abre a conversa com uma simpática chantagem emocional: “Você é foda. Se eu não te ligo, tu não tá nem aí pra mim”. Foi assim com o chefão do tráfico da zona oeste carioca, Celsinho da Vila Vintém, preso na penitenciária de segurança máxima de Bangu, condenado a 48 anos por assalto e tráfico. Celsinho, claro, escancarou um sorriso. Para o diretor do presídio, usou uma variação: “Vem cá, tu não tá nem aí pra mim. Eu faço tudo pra você e tu não tá nem aí”. O interlocutor sente-se prestigiado.

Outra de suas estratégias é a brincadeira da intimidação. Ao repórter de ALFA fez várias, todas com um sorriso largo no rosto. Numa noite, instruiu Diego da Silva Santos, o Mister M, ex-encarregado da segurança pessoal do chefão do Morro do Alemão, Luciano Pezão: “Mister M, se ele falar mal de mim nesta matéria, tu pega ele”. Todos rimos. Mister M, que se entregou voluntariamente às autoridades, acompanhado de sua mãe, após a invasão do Complexo do Alemão, parece realmente recuperado. Um rapaz de 26 anos em busca de uma oportunidade. Noutra ocasião, Junior fez questão de mencionar uma suposta relação próxima com um alto executivo do Grupo Abril, empresa que publica ALFA.
Na loja da Reserva (1); o Prêmio Orilaxé: direção de Roberto Talma e presença maciça dos atores da novela das 9 (2); em visita ao presídio de Bangu (3); o governador Cabral e o ex-traficante Tuchinha (à dir.) em inauguração: “A foto tem de ser essa”, planejou Junior. Saiu exatamente assim (4)
Há quatro anos, conheceu a produtora de moda Helena Montanarini. Ela o levou à loja da Osklen para escolher novas roupas. Na condição de celebridade, ele não precisa pagar. Tem livre acesso também às grifes Reserva, Adidas Originals e Evoke (óculos). Seu carro, comprado pela ONG, é um Land Rover Freelander 2, que custa 140 mil reais. O celular é Iphone 4. Convites para viagens internacionais, só de classe executiva. Não abre mão da tradutora de sua confiança. O projeto arquitetônico da sede é assinado pelo artista plástico Luiz Stein, marido da cantora Fernanda Abreu. Mora num condomínio de classe média alta, próximo ao mar, cujo endereço pede que se mantenha em sigilo por razões de segurança.
Meia dúzia de grandes figurões e dezenas de antigos soldados de nível intermediário no tráfico convivem com ele. Alguns, mais chegados, frequentam sua casa e servem como uma proteção. “Eu jamais pediria para algum dos meus amigos fazer uma besteira. Mas é a tal história… tenho certeza de que se algo de ruim me acontecesse, eles não deixariam barato”, diz. Supersticioso, tudo o que o cerca leva seu número da sorte, o sete: a placa de seu carro tem final 7777, os mesmos de seu número de celular. É coberto de tatuagens: o faraó Akhenaton, um samurai, Xangô, Shiva, Thor, a estrela de Davi, uma coroa atravessada por uma espada e uma Cruz de Ágata. Os riscos que ele corre não vêm apenas de bandidos insatisfeitos por algum suposto privilégio a uma quadrilha rival. Há desafetos também na PM. Durante algum tempo, carregou a pecha de braço do Comando Vermelho. Ele tem se empenhado, nos últimos anos, em abrir o leque de relacionamentos que demonstrem sua imparcialidade entre as diversas facções criminosas.
Junior nunca economizou esforços para ver sua rede de amizades florescer. No início dos anos 1990, foi levado a um evento pelo poeta Wally Salomão, que queria apresentá-lo a sua turma. Em certo momento, ele avistou Caetano Veloso. Ficou à espreita, esperando o momento certo de se aproximar. Quando Caetano ficou sozinho por um instante, atacou. Nem tão tranquilo, mas infalível como Bruce Lee. Meses depois, o baiano participava de shows do AfroReggae e aceitava ser padrinho da banda, junto com a atriz Regina Casé. “José Junior é um dos maiores empreendedores sociais que esse país já conheceu. Pela cultura, vem libertando crianças, jovens e adultos”, diz o governador do Rio, Sérgio Cabral. No fim do ano passado, Cabral foi ao complexo de Bangu inaugurar uma Unidade de Pronto Atendimento em Saúde, sugestão de Junior. Estavam presentes o ministro da Saúde Alexandre Padilha, o vice-governador Luiz Fernando Pezão, os juízes da vara de execuções penais, entre outros. Junior fez com que Tuchinha e Gaúcho (Claudio Piuma, ex-Comando Vermelho, condenado a 54 anos de prisão por assalto e tráfico, atualmente coordenador do AfroReggae) subissem ao palco. Era o primeiro dia de Tuchinha em liberdade. O governador o citou em seu discurso. Pouco antes da cerimônia, Junior já planejava: “A foto pros jornais tem de ser o governador com o Tuchinha”. O jornal O Globo, na edição online, publicou dessa maneira.
“Isso sim é ter poder. É ter como patrocinadores a Natura, o Santander. É ter relacionamentos. Transformar o Mr. M em modelo. É fazer o Tuchinha apertar a mão do governador”, afirma. “Não sou secretário de estado no Rio porque não quero.” Pouca gente percebeu que, enquanto as autoridades estavam no palco, a menos de 5 metros estavam dois ex-integrantes da quadrilha do Complexo do Alemão que, havia poucos meses, lutaram contra a ocupação policial. O esquema de segurança oficial nem tomou conhecimento. Os rapazes, como nunca haviam sido detidos, eram desconhecidos da polícia (na favela, andavam com fuzis, pistolas e granadas). Trabalham no AfroReggae como cinegrafistas e operadores de áudio. Nada é feito às escondidas. Um pouco antes, Junior os apresentou ao juiz da Vara de Execuções Penais, Carlos Eduardo Figueiredo, exatamente como são: ex-integrantes de quadrilha. O juiz os cumprimentou normalmente.
É isso que fascina os bandidos. ALFA acompanhou uma visita de Junior a quatro unidades penitenciárias no Rio. É um superstar. Não porque financiou a compra de ventiladores ou o parquinho para os filhos dos detentos, mas porque personifica uma nova chance. Como o tráfico de drogas já não é tão rentável e nem tão impune, mais gente quer mudar de vida. Ele é também uma garantia contra o pior rival de um ex-chefão: policiais que praticam extorsão em busca do dinheiro guardado.
Seu único inimigo declarado é o pastor Marcos Pereira, pregador evangélico que trabalha na mesma área. “Se alguma coisa me acontecer, foi o pastor Marcos o responsável. Já tive vários problemas desse tipo, mas o alerta nunca foi tão vermelho quanto agora”, avisa. Pereira nega qualquer problema. “Se ele se sente ameaçado, alguém está nos jogando um contra o outro. Eu jamais ameaçaria alguém”, diz. Junior teve uma infância difícil. O pai, alcoólatra, batia nele e na mãe. Na juventude, viu a morte dos companheiros vítimas da violência, das drogas e da Aids. Com o AfroReggae, tudo mudou. Casou-se, teve quatro filhos, venceu. Daí a identificação com Shiva, divindade da reconstrução e da transformação. E é por isso que adora duas franquias cinematográficas: Rocky e Guerra nas Estrelas. Conhece os filmes em detalhes e tem alguns gravados no celular para ver entre um e outro compromisso.
Conflitos, tem tido alguns. Recentemente, suas relações com a diretora de marketing da Coca-Cola, Luciana Feres, ficaram abaladas. Junior estava negociando uma parceria com a empresa e ficou indignado ao saber que o valor que lhe fora oferecido era inferior ao de um projeto do artista plástico Vik Muniz. A conversa com a executiva foi dura. “Vê se da próxima vez que você me ligar me faz uma proposta do nível do AfroReggae”, falou. Em conversa posterior, ele foi ainda mais duro. “Eu apenas disse que onde ela entrasse com algum projeto social, eu entraria atrás fazendo muito mais barato”, explica. A empresa não confirma e nem desmente o entrevero. “Com o AfroReggae, compreeensão e respeito foram a tônica de várias parcerias recentes de sucesso, como, por exemplo, o Desafio da Paz de 2011”. O próprio Junior não nega. “Se eu quiser, eu faço de graça, mas tenho que gostar. Tenho um problema de consciência muito grande. Eu não gosto da Coca-Cola.”, afirma. No ideário de José Junior, não há sonho impossível.
Matéria publicada na Revista ALFA de março de 2012.

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