Por Hermes C. Fernandes, no Cristianismo Subversivo
Em algumas sociedades antigas como a Grécia, crianças que nasciam portadoras de deficiências físicas eram sacrificadas. Havia uma razão prática para isso e uma justificativa religiosa. De acordo com a sua crença, Deus ou os deuses só teriam criado pessoas perfeitas, e, portanto, somente as tais mereciam viver.
Acreditava-se que tais crianças eram aberrações, seres amaldiçoados. Matá-las era prestar um serviço aos deuses. Pelo menos, era assim que eles apaziguavam sua consciência. Mas a razão verdadeira e nem sempre confessada era que deixá-las viver traria prejuízo à sociedade, já que não seriam produtivas, nem poderiam lutar numa guerra e ainda atrapalhar numa eventual fuga. Assim, tais seres indefesos eram vistos como um peso extra do qual deveriam se livrar o quanto antes. Poupá-las colocaria em risco a sobrevivência da nação. Portanto, em nome do bem comum, da manutenção da ordem, eliminem-nas.
Durante séculos convivemos com a vergonha da escravidão. Certas etnias se achavam no direito de escravizar a outras, usando suas crenças como justificativas. Brancos afirmavam-se superiores aos negros e até questionavam se os mesmos tinham alma ou se eram apenas seres irracionais, semelhantes aos animais. Versos bíblicos foram pinçados para justificar o uso de mão-de-obra escrava. Deixá-los livres colocaria em risco a ordem social. Por isso, os abolicionistas eram acusados de progressistas, de subversivos, de inimigos da ordem que conspiravam contra o bem-estar e a prosperidade da nação.
Genocídios foram perpetrados e justificados por uma crença equivocada. Episódios bíblicos como o de Jericó e das cidades cananitas conquistadas por Israel eram evocados. Sociedades inteiras como as pré-colombianas foram dizimadas.
Quem seriam hoje as vítimas de nossos preconceitos? As mulheres? Os gays? Que passagens bíblicas estaríamos usando para justificá-los? De que lado estaríamos se vivêssemos durante o tempo em que a escravidão era tida como um direito divino? Como nos posicionaríamos quanto à matança de crianças deficientes?
Deus não criou deficientes! Bradavam alguns.
Os negros são uma aberração! Não têm alma! Merecem ser escravizados.
Em nome deste mesmo fundamentalismo muitos bradam: Deus criou macho e fêmea! Não criou homossexuais, nem transexuais ou coisa parecida! Portanto, que direitos eles teriam?
Um pastor americano declarou em uma pregação que os homossexuais não têm o direito sequer de existir. Segundo alguns, sua existência coloca em risco o modelo de família que tanto prezamos, assim como a existência de crianças deficientes colocava em risco a segurança da sociedade grega antiga, e a liberdade dos escravos implodiria a ordem social vigente à época.
De fato, Deus não criou gays, como também não criou negros, nem deficientes, nem hermafroditas. Ele criou seres humanos, sujeitos a várias condições, circunstâncias, limitações. Nada mais complexo do que aquele a quem a Bíblia chama de “imagem e semelhança de Deus”.
Assisti neste domingo a uma matéria no Fantástico sobre uma criança transexual e sua luta para poder usar o banheiro feminino de sua escola. Seu irmão gêmeo é um menino como outro qualquer. Ele, porém, desde que se entende por gente, percebe-se como pertencente a um gênero distinto de sua anatomia. Veste-se como menina. Fala, sente, pensa e age como tal. O que dizer a esta criança? Estaria possuída de demônio? Um exorcismo resolveria seu problema? Seria simples assim? Ou seria a educação recebida em casa? Então, por que seu irmão gêmeo não apresentou a mesma tendência?
Senti-me tocado pela história desta criança. Imaginei como deve ser difícil para os pais ter que enfrentar uma sociedade hipócrita, que diz crer nos preceitos bíblicos, mas usam-no para justificar um dos maiores pecados cometido por membros de nossa raça: o preconceito.
Minha alma chorou. Este pequeno ser humano poderá ser condenado ao limbo da existência.
Nem a sociedade, muito menos a igreja, está preparada para lidar com isso. Alguns países islâmicos fundamentalistas dão ao problema a mesma solução que os gregos davam às crianças deficientes: homossexuais e transexuais são condenados à morte.
Vale aqui distinguir entre uma coisa e outra. O homossexual geralmente não tem problema com sua anatomia. Ele busca reconciliar sua homoafetividade com o seu sexo biológico. Já o transexual vive uma crise, pois sente uma mulher num corpo masculino ou vice-versa. Muitos optam por submeter-se a uma cirurgia de troca de sexo.
Como reagiríamos se um transexual operado se convertesse ao evangelho? Aceitaríamos sua nova condição ou pressionaríamos a que revertesse sua operação? E como reimplantar um órgão masculino que fora removido?
Muitas outras questões surgem daí e demandam respostas honestas e francas. Entretanto, a primeira medida que precisa ser tomada é nos conscientizarmos que tais pessoas são seres humanos criados por Deus e que vivem numa crise interminável, tanto para lidar com suas pulsões quanto para lidar com os preconceitos da sociedade. Devemos acolhê-los ou discriminá-los? Seria ético impormos alguma condição para que fossem recebidos? Que condição impomos para recebermos outros tipos de pecadores? Como acolhemos um empresário desonesto que explora seus empregados sem dar-lhes os direitos trabalhistas e ainda sonega impostos emitindo notas frias? Somos condescendentes com eles? Por que somos tão radicais em se tratando de sexualidade, mas tão maleáveis em outras questões? De que temos medo, afinal? Será que homossexualidade é contagiosa? A sexualidade dos nossos filhos correria algum risco caso a igreja acolhesse tais indivíduos? Haveria dentre nós alguns mal resolvidos nesta questão?
A verdade é que já há homossexuais em nossas igrejas, todavia, mantêm-se velados, temerosos de serem descobertos, expostos e excluídos. Tenho a impressão de que prezamos mais a hipocrisia do que a sinceridade e transparência.
Tudo o que acontece sob a capa da clandestinidade só faz fomentar todo tipo de promiscuidade. Há gente molestando e sendo molestada nas igrejas. Mas desde que isso não venha a público, tudo bem. O importante é evitar o escândalo.
Tomamos a contramão do que Paulo apresenta como sendo o ideal para ambiente de culto. Segundo o apóstolo dos gentios, onde está o Espírito do Senhor aí há liberdade. Num ambiente desprovido de preconceito, cada pessoa tem liberdade de ser exatamente o que é, apresentando-se a Deus “com o rosto descoberto” a fim de ser transformado segundo a imagem de Cristo. A transformação operada pelo Espírito tem como ponto de partida o que somos e não o que fingimos ser. Porém, um ambiente impregnado de legalismo e moralismo, as pessoas preferem lançar mão de máscaras religiosas, mantendo em sigilo seus conflitos interiores. O problema se agrava quando a igreja pressiona o indivíduo homossexual a se casar. O objetivo do matrimônio de fachada é provar que por trás dos trejeitos afeminados há um hétero. Conheço um caso de um “ex-gay” que se casou para provar sua conversão. Um ano depois, sua esposa procurou-nos para confessar que se mantinha intacta. Ele jamais a tocara. Adoraria acreditar que isso fosse uma exceção.
Casos de homossexualidade atingem até famílias pastorais. Há pouco soube de um pastor de renome que enviou seu filho de apenas 15 anos para fora do país, depois que o mesmo confessou ser homossexual. Pior que este foi o caso do filho de Oral Roberts, pregador norte-americano mundialmente conhecido, que depois de admitir sua homossexualidade, suicidou-se com um tiro no coração.
Devo esclarecer que em nenhum momento saio em defesa da prática homossexual. Há pelo menos seis passagens bíblicas que condenam atos libidinosos entre pessoas do mesmo sexo. Por outro lado, há mais de dois mil versículos que denunciam injustiças sociais e condenam o abuso do poder econômico. Parece que a Bíblia está mais preocupada com questões sociais do que com sexualidade. Nem Freud daria conta de explicar esta nossa obsessão por questões desta natureza.
Que tal sermos mais compassivos? Que tal soltarmos nossas pedras em vez de arremessá-las? Antes de nos arrogarmos detentores da cura para a homossexualidade, sugiro que busquemos em Cristo a cura para os nossos próprios preconceitos. O remédio tem em sua fórmula dois componentes: graça e amor. Graça para perdoar. Amor para acolher. O resto, deixemos por conta do Espírito Santo.
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