Cá entre nós: a maioria dos pastores controla, vigia e domina ao invés de cuidar. E não estou me referindo apenas aos Malas da vida, estou falando de você mesmo.
Julio Zabatiero, no Facebook
Trinta e cinco anos ensinando teologia. Embora a cada ano as turmas se renovem, algumas perguntas sempre se repetem. Uma delas: como aplicar na igreja tudo o que aprendemos? Por trás desta útil e inocente pergunta há muitas ansiedades. Dentre elas, talvez a mais comum e importante seja: há uma diferença tão grande entre o que se estuda na Faculdade de Teologia e o que se vive na igreja, como conciliar esses dois mundos? No fundo, no fundo, mesmo quando não consegue expressar, a maioria dos estudantes de teologia desconfia da viabilidade prática do estudo teórico. Imaginam que, no final das contas, irão aprender a pastorear apenas na igreja, na prática, prática que irá enfim se provar verdadeira e comprovar a inutilidade das belas teorias estudadas no bacharelado. Permitam-me oferecer uma resposta possível à pergunta.
Em primeiro lugar, e falando francamente: o que se estuda na Faculdade de Teologia não é para ser “aplicado” na igreja. A mera noção de que teoria é algo que pode ser “aplicado” revela um dualismo epistêmico e metafísico insustentável. Dualismo epistêmico? Palavras misteriosas que traduzem o senso comum: “na prática, a teoria é outra”. O senso comum e o senso acadêmico, neste caso, estão ambos errados, até porque são duas versões para a mesma incompreensão. Teoria e prática não são duas realidades opostas, são os dois lados da mesma moeda, são as duas dimensões da ação intencional, são as duas metades do todo. O fato de estarem separadas no tempo e espaço durante o período da formação acadêmica não pode ser elevado a uma condição permanente essencial.
Durante o curso, a teoria estudada não deve ser recebida e apreendida como a verdade que revela a falsidade das crenças e práticas eclesiais. Seria mero trocar seis por meia dúzia, e eu já cansei de ver essa história: ingressante “fundamentalista”; torna-se crítico, progressista na Faculdade; volta ao primeiro amor no pastorado. Moral da história: não aprendeu nada, o tempo de curso teológico foi desperdiçado. Teoria não é “verdade” é desafio de aprendizado, proposta de reflexão, possibilidade de auto-conhecimento, abertura para o discernimento. Prática e tradição eclesiásticas também não são a “verdade”, são hábitos acumulados, teorias esquecidas, práticas reprisadas. A prática não é “laboratório”, é lugar de repetição, mas não de replicação de experimentos. Em outras palavras: não adianta copiar o modelo de igreja bem-sucedido do vizinho. Na prática, a prática é outra.
Em segundo lugar, e falando candidamente: o trabalho do pastor não é transformar a igreja, não é consertar os seus erros, não é levar a verdade aos confusos leigos, não é promover uma nova e derradeira Reforma (ou Revolução). O trabalho da pastora é cuidar das pessoas. (Você ficou confuso? Cuidar é trabalho da pastora, ou do pastor, ou de ambos? Antes de responder, seu trabalho é aprender a lidar com a diversidade sem reduzi-la a hábitos “universais” de linguagem.) Todas as atividades formais e informais do pastorado têm como único objetivo, como única natureza, como verdadeira essência (ai de mim! usando tais termos tão metafísicos): cuidar das pessoas. Quem ama, cuida. Nem todos os que cuidam, porém, amam.
Uma pista para rejuntar teoria e prática: estudamos teorias na Faculdade de Teologia para, na hora H, perceber e construir a diferença entre: “cuidar e controlar”, “cuidar e vigiar”, “cuidar e dominar”. “Ah! Agora estou vendo por que o prof. insistiu em ler Foucault com a gente” (diria eu, imagino, um ex-estudante consciente, formado há algum tempo. Hoje em dia, a leitura preferida seria Agamben, “Foucault” italianizado e atualizado).
Cá entre nós: a maioria dos pastores controla, vigia e domina ao invés de cuidar. E não estou me referindo apenas aos Malas da vida, estou falando de você mesmo, de pastoras e pastores “normais”, que “dão a vida pelo rebanho”. Se você tivesse estudado comigo, também teria lido Habermas, e a distinção entre “ação comunicativa” e “ação estratégica” cairia no seu colo e dominaria a sua oração de confissão de pecado pastoral. Se você pastorear estrategicamente, jamais será capaz de cuidar, apenas de controlar, vigiar e dominar.
Em terceiro lugar, e falando nua e cruamente: pastorado é tempo-espaço de prática e estudo teórico simultâneos. Na prática, refletindo teoricamente, a teoria se aperfeiçoa, e a prática se renova. Novos hábitos de pensamento e ação são construídos pela comunidade crente. Pela “comunidade”, é isso mesmo, “meu chapa”. Ou a comunidade renova seus hábitos, ou o próximo pastor da igreja irá consertar todos os seus erros, e a comunidade continuará trocando de teoria na prática, toda vez que trocar na prática, a teoria do pastor. Achou confuso? Traduzindo para o velho hábito de linguagem: “tal pastor, qual igreja”. Eis o maior pecado do trabalho pastoral: fazer a igreja à sua imagem e semelhança. Por que o maior? Por que é idolatria.
Lendo Foucault, Agamben, Habermas (ou nenhum destes, mas vários outros – desde que bem escolhidos), pode-se questionar a prática, por exemplo, do sacerdócio clerical e desenvolver pistas para pensar e praticar o sacerdócio universal não-clerical. Conhecendo boas teorias, toda aquela coisa bonita de “dons espirituais” do Novo Testamento pode ser repensada e reinventada na teoria e na prática do ministério pastoral não-dominador, não vigilante, não-dominador. Conhecendo boas teorias e renovando os hávitos pessoais, pastores e pastoras podem aprender (eu acho que consegui aprender…) a diferençar pessoas de ovelhas. Você ainda não havia “sacado”? “Pastor” e “ovelha” são apenas metáforas. As pessoas que estão sob seu cuidado pastoral são pessoas em sua totalidade: agem, sofrem, sentem, pensam. Não são “ovelhas” que obedientemente seguem o pastor pelos pastos verdejantes.
E você? Você não é pastor. Você é parceiro das pessoas que compõem a comunidade de quem você cuida. Parceiro! Se você não tiver preguiça, encontrará nessa única e simples palavrazinha uma nova teoria e uma nova prática eclesiais-pastorais.
via Pavablog
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