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"Meus filhos terão computadores, sim, mas antes terão livros. Sem livros, sem leitura, os nossos filhos serão incapazes de escrever - inclusive a sua própria história." Bill Gates

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sexta-feira, 5 de abril de 2013

Anônimos que tornam a terra habitável

imagem: Google
Ricardo Gondim, no seu site


Nem sempre conseguimos lidar com a condição humana, limitada, inadequada e ambígua. Acabamos perdidos na busca de compreender o sentido da vida. Poetas, filósofos e teólogos ainda não decifraram a razão de nos inquietarmos diante do mal. Por que a virtude encanta? De onde vem a idéia de certo e errado?
A panela de pressão étnica explodiu entre Tutsis e Hutus em Ruanda na década de 1990 e cerca de oitocentas mil pessoas morreram em 45 dias; a maioria chacinada com facão e machado. Em 2008, a tragédia ruandense se transferiu para o vizinho Congo e as mesmas mortes absurdas se repetiram. O resto da humanidade, impotente, complacente, alienada, não reagiu.
A invasão do Iraque pelo governo de George W. Bush custou pelo menos 3 trilhões de dólares aos cofres dos Estados Unidos. Calcula-se que essa guerra estúpida, nascida de uma mentira, matou mais de um milhão e duzentos mil civis – numa população de 29 milhões – entre  março de 2003 a agosto de 2007. E até agora ninguém foi indiciado nos tribunais internacionais por crime de guerra.
Em Serra Leoa, milícias rivais se enfrentam há décadas. Meninos soldados decepam mãos, braços e pernas de outras crianças, de mulheres e de idosos. A maldade gratuita, os crimes hediondos, não comportam explicações simples. O por quê de quem não aceita conviver com a barbárie persiste como o nó górdio da teodicéia.
Diante do horror, ouve-se um simplismo pessimista: “O ser humano é inviável”. Nada disso. A humanidade conviveu com tanta carnificina que, se os seres humanos fossem mesmo inviáveis, já teriam sido extintos, como os dinossauros. Civilizações, por incrível que pareça, se reinventaram nas tragédias. Povos devastados ressurgiram das cinzas. A força do bem, embora frágil, continuou, e permanece, maior que o poder do mal.
A história oscila entre extremos. O pêndulo que permite a vida, ora desce à perversidade mais profunda, ora avança na escala da virtude. Todo o progresso civilizatório foi marcado por idas e vindas. Fomos criados com sombras e luzes. O corte que separa certo e errado, bem e mal, acerto e erro não é cirúrgico. Violência rampante topa com iniciativa humanitária, e desacelera. Cinismo político muitas vezes murcha diante de engajamento comunitário. Mobilização popular derruba tirania. Embora negros ainda sofram preconceito, a escravidão virou crime. Misoginia perdura; as mulheres, entretanto, conquistaram o direito de votar  - e governar.
Pessimismo agudo, que só vê a inadequação do homo sapiens, ajuda a evitar o dever de construir a história. Ao considerar a humanidade irremediavelmente perversa, o mal  passa a ser aceito como irremissível. Fica mais fácil explicar a maldade caso corpo, terra e mundo forem intrinsecamente ruins e a existência, masmorra que aprisiona o espírito. Determinismo espiritual, que coloca a humanidade em estado de queda – como se existisse um código genético que condena a humanidade à perversão -, é responsável por muita atrocidade. Basta repetir: os seres humanos nascem desfigurados e contaminados com uma lepra moral (vício, na filosofia e pecado, na teologia), e a realidade continuará intocada. Quanto mais íngreme a ladeira da decadência, menor a responsabilidade. O mecanismo é poderoso, bastante usado na filosofia e teologia  - Agostinho, Anselmo, Pascal.
Ao aceitar a inexorabilidade do mal, qualquer realidade fica plausível. “Fomos criados assim, nada pode ser feito”. “Cachorro não late para ser cachorro; late porque é cachorro – as pessoas não são pecadoras porque pecam, pecam porque são pecadoras”. Sobre tais pressupostos, o ódio que destrói passa a ser natural.
Noite passada sonhei que várias pessoas parecidas comigo andavam na beira de um precipício. Todos falávamos ao mesmo tempo. Repetíamos desculpas. Desmerecíamo-nos. Eu era uma espécie de líder. Justificava a minha índole aos gritos. Para não encarar petulância, projetava meus defeitos nos parentes. Comecei a falar de Adão e Eva. Dizia que estava aleijado espiritualmente por causa deles. O primeiro casal merecia a máxima condenação. Por que não resistiram a tentação da árvore do conhecimento do bem e do mal? Sem saber lidar com a minha condição de  luz e sombra, eu acabei jogando em Deus “a grande culpa”. No sonho, não disfarçava a zanga: “Afinal de contas, não pedi para nascer deformado. Não tenho como reverter a natureza que herdei. Se não posso praticar o bem, por que também sou condenado? Melhor cruzar os braços, deixar rolar e ver como é que fica”.

De repente, alguém acenou na margem oposta do abismo. De mangas arregaçadas, ele não gritava, apenas tentava ser ouvido: “A maldade não é sina”. E por três vezes repetiu: “É possível frear o avanço da maldade. Vale a pena começar por você mesmo”.  Notei que o homem tinha cicatrizes nas duas mãos. Ainda calmo, contou uma lenda do Talmude: “Em cada cada geração, vivem 36 pessoas justas que são o alicerce do mundo. Eles são os “santos ocultos”. Ninguém os conhece ou poderá elogiá-los, mas graças às suas ações anônimas a terra se torna um lugar mais habitável e decente. Pare de justificar-se, una-se a eles”.
Acordei repetindo para mim mesmo: “prometo esforçar-me”.
Soli Deo Gloria

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